segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Às vezes um cheiro



Eu até podia ter seguido sem ver, ter ido por outro lado, o corpo a desviar-se, os olhos no chão, o lambril do passeio e o alcatrão incerto da estrada, o ruído dos automóveis a fugir e eu, cuidadoso, a atravessar a rua, a perder a oportunidade. Seguiria sem novidades, uma repetição de gestos que garantiriam o exercício de uma pretensa vida. Calcorrear a rua até ao número 87, subir ao terceiro andar, ocupar a minha secretária, abrir o computador, atender o telefone, tomar nota, registar o correio, responder e anuir. Sobretudo, anuir. Regressaria depois à rua para o almoço, um croquete de berbigão, um brigadeiro pecaminoso coberto de pepitas delicadas de chocolate, trincas pequenas para fazer durar. Por capricho. A voz do médico a dizer

Tem de controlar o colestrol. Evite os fritos.

O sem abrigo não me olhou, não parou, não falou sequer. Limitou-se a avançar pelo passeio, lenta e penosamente, e eu senti de imediato o cheiro, um rasto poderoso, inesperado. Um toque de almíscar. Um vento forte de madeira de ébano. Foi uma tentação segui-lo, curvado, escondido nas roupas escuras. Estava nisto, na perseguição do cheiro, quando o sem abrigo, por fim, estacou e olhou para trás; a percepção de não estar sozinho naqueles passos. E foi nessa altura que realmente vislumbrei a hipótese de fuga, o tal atravessar a estrada, evitar os carros na avenida, uma buzina a avisar, um rosto na janela a insultar-me

Vê por onde andas, palhaço.

Aguentei o olhar baço, a hesitação do corpo, os botões mal abotoados do casaco de inverno. Fiquei preso no cheiro. Não tenho vergonha de o dizer. Terra fresca, um avinagrado ligeiro. Uma cápsula de odor encheu-me os pulmões. Cerrei os olhos e aspirei com força. O sem abrigo manteve-se. Uma pose fora do contexto. Um retrato dos dois na rua seria, calculo, um momento raro na azáfama da cidade. Fora de tudo, de mim e de ele e da vida. Na montra, perto de mim, mesmo aqui ao lado, pressenti um olhar incrédulo. Abri os olhos e mantive-os nos dele. Lentamente, a mão rugosa, velha, castanha, deslizou para o bolso do sobretudo. Estendeu-ma com cuidado e, nesse movimento em direcção a mim, a mão abriu-se e vi uma quantidade enorme de papéis brancos, cortados fininhos, como uma massa.

São da perfumaria. Trazem perfume. É bom para tomar banho.

Ficámos os dois a olhar aqueles tesouros de olfacto no mar fechado da mão. Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Ouvi a voz do meu filho mais velho

Já passou, já passou.

O sem abrigo recolheu a mão. Hesitou. Avançou para mim e entregou-me os papelinhos da perfumaria, o mostruário de cheiros que me fizeram, por fim, acreditar na tua partida. Agradeci a oferta com um gesto de cabeça e o homem afastou-se, por fim, com a dignidade de um gesto grandioso, com a superioridade de um sofrimento menor que o meu. Na rua, em pleno Porto, a ver as obras e o metropolitano a passar à superfície, o rio que se adivinha, cheirei o fim do meu mundo. Nunca mais serei feliz. Não porque não queira. Porque não posso. Porque as tirinhas de papel que guardam a tua essência se vão perder com o tempo e eu com elas. É uma decisão esta que tomo aqui. Hoje não volto para casa. Hoje vou ficar na rua. Amanhã roubarei a alguém a comida que afastará a fome. Depois de amanhã vestirei um casaco castanho demasiado grande. Para o mês que vem já não saberei quem sou. Daqui a um ano o sem abrigo sou eu. Não é culpa tua, não penses. É apenas uma opção. Entre estar na vida sem ti e estar na rua, atirado à descrença de todos os princípios civilizacionais, prefiro aguardar a caridade da menina da perfumaria que, quem sabe?, um dia me oferecerá papelinhos de cheiro para afastar todo o mal que se acumula em mim. Nesse dia sorrirei. E só nesse dia. Diz aos meus filhos que o pai se perdeu. Manda dizer uma missa por mim. Não penses sequer em voltar. Não estou à tua espera.