sábado, 25 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 3

(Desanimada, começa a tirar formas de bolinhos de um armário)

Claro que já passei esta fase. A minha mãe é igual a tantas outras e, por vezes, é capaz de gestos absurdos de amor, de amor incondicional, que eu só não vejo porque não me interessa. É mais fácil não ver. Sou crescida, o mundo já não se divide entre bons e maus; entre um minuto de atenção da minha mãe ou a sua imagem compungida, ao telefone, a resolver qualquer problema emocional de um ser outro que não eu, alguém mais importante que eu por certo. Agora faço sopa e bolos e não os partilho com ninguém porque, porque... porque conclui que não vale a pena sair de casa, conviver, dar-me aos outros, esperar retorno, ser feliz. Banalidades. Coisas de mulher. Não, eu devia estar lá fora...

(Vai à janela)


... a cumprir o meu papel, a ser... A ser qualquer coisa. A funcionar. A fazer coisas. A pensar o mundo. Como avançar, como criar, como poupar o planeta, como ser activa e defensora dos animais. Coisas assim cuja vulgaridade assusta, mas que são, afinal, a condição humana. Não será, porventura, dignificante uma mulher estar na cozinha a dizer estas coisas e a pensar que o ideal é não fazer nada. Deixar-me estar. Saltar de um penhasco. Da janela. Não desta janela, claro. Não teria sucesso.

(Continua a cozinhar)


E o lado trágico da morte não me enternece. Há o pitoresco que a morte sempre traz: como é que a minha mãe reagiria? O que vestiria no meu velório? Haveria um velório? Chegaria eu ao Céu? E Deus falaria comigo? Prefiro pensar que Deus falaria comigo para me esclarecer sobre os mistérios da vida, assim como numa aula de código para aprender a guiar o automóvel. Deus sentar-se-ia à minha frente com um livrinho com perguntas e respostas múltiplas. Portaste bem? A) sim B) às vezes C) quem? Eu? C) vá à merda