quarta-feira, 30 de abril de 2008

pára com isso

O homem tinha as mãos na cabeça, estava recolhido, como se fosse uma tartaruga. Fazia lembrar uma tartaruga. O restaurante não tinha quase ninguém. À frente do homem estava um prato de carne com batatas fritas. A comida estava fria. O homem agarrava a cabeça com as mãos e o seu silêncio era angustiante. O empregado rondava por ali a ver se o desastre acontecia. Então o homem disse:

-Pára com isso, pára com isso.

- Desculpe? - pediu o empregado muito solícito.

- Estava a falar comigo. Pode trazer o ketchup?

- Com certeza.

- Obrigado.


Era véspera de feriado e o homem comia agora carne fria, tentava compôr o seu boneco, a sua imagem: endireitava as costas, tossia ligeiramente para clarificar uma voz que não se ouviu, passava a mão pelo cabelo.
Em segundos deixou de estar derrotado e comeu com avidez.
Fosse o que fosse tinha parado.

terça-feira, 29 de abril de 2008

homem na cidade

O miúdo fazia os trabalhos de casa e o Carlos do Carmo cantava na cozinha. O miúdo disse:

- Não gosto de fado. Gosto de rap.

A mãe continuou a lavar a loiça. Pouco depois, no fim de Um Homem na Cidade, o miúdo considerou:

- Não gosto de fado, mas este não é mau.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

o tique

A minha tia avó morreu na sexta-feira. Eram cinco da tarde e a cozinha cheirava a muamba, quiabos frescos, galinha, beringelas e courgettes numa sopa de óleo de palma e outras coisas. A minha mãe telefonou e eu rumei ao Alentejo. Eram seis e um quarto. Levei o disco novo Camané...

Sei de um rio, sei de um rio... na minha boca.... até quando...

e claro que ele não sabe, mas ouvi a faixa oito até chegar a Beja, interruptamente, o meu indicador a puxar a música, a exigir um novo começo. Quando a minha tia Chica morreu fui ao Alentejo com o meu tio e ouvimos Marisa Monte. Há uma música que eu associo a essa morte, uma coisa que diz:

abululou, e a saudade vem...

Agora tenho o Camané.
Quando cheguei à nova casa mortuária vi o tique que nos une. A minha avó, a minha mãe e eu é igual ao mesmo gesto: depenicar a pele do polegar com o indicador, puxa, puxa, puxa até ferir. São os nervos mudos.
Houve uma questão com o coveiro, outra com o homem da funerária. Fazia muito calor. Decidiu-se, por fim, que a minha tia seria enterrada na campa onde está a minha outra tia, a minha bisavó e o meu bisavô. Eu disse:

- Sempre põem a conversa em dia.

O meu pai riu-se. Fazia imenso calor e na minha cabeça o Camané continuava:

Sei de um rio, sei de um rio...

quinta-feira, 24 de abril de 2008

O resto

O resto é apenas aquela sensação estranha de estar onde não se deveria. Há dias assim.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

o tatuador

O tatuador brasileiro mostrou a carpa desenhada no braço.
Foi um gesto de orgulho e de prazer.
Quando a sessão começou o tatuador colocou o som da aparelhagem alto.
Ela fechou os olhos.
E depois veio a dor.

terça-feira, 22 de abril de 2008

ir à pesca

Livros franceses, ingleses, alemães, livros para crianças, livros sobre sexo, dicionário e poesia. Nos corredores da editora os livros crescem e eu ando de gatas a ver o que pesco, como alguém com fome nos caixotes da cidade.
Não me lembro de não os ter: os livros. Formatos diferentes, capas sóbrias, coloridas. Tudo se despe nos livros. O nosso melhor, a nossa maldade. Ter um livro é viajar, dizia o meu tio avô. E agora, deslumbrada pelo corredor recheado de livros sinto tanta falta desse tio guardião, da sua gentileza teimosa, as mãos grandes a guardar um livro para mais tarde, a guardar a madrugada, os meus sonhos de menina. Ele tinha uma unha partida que fazia uma ruga e eu tinha, então, o fascínio extremo por aquele dedo que passava as folhas dos livros enquanto me lia em voz alta ou, em silêncio, para si, viajava naquela história. Mais uma história.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

mini prato

Duas mulheres no centro comercial à volta de uma salada com molho de iogurte:

- Estás a ver a minha situação...

- Sim, realmente. Devias mandá-lo bugiar.

- Isso é muito fácil de dizer.

- Também é verdade.

- O pior é que depois chega à noite, na cama, e quer que eu sirva mini pratos.

- Mini pratos?

- Dar uma de borla. Tu sabes.

- Ah, sim, claro.

ontem à noite

Foi quando tu chegaste que o frio se desfez. Só então.

domingo, 20 de abril de 2008

o passeio

As nuvens ameaçadoras mantinham-se perto da ponte Vasco da Gama.
A mulher avançava para dentro da nuvem, sem medo da chuva e do vento.
Era domingo e estava sozinha.
Não havia crianças, bicicletas, skates ou patins, cães e famílias.
Estava tudo em casa, protegido; ou no centro comercial mais próximo.
A mulher, essa, continuava a caminhar de forma vigorosa.
Quando começou a chover não deu por isso.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

stop

O restaurante estava cheio, barulho de conversas, telemóveis, talheres, um senhor a gargalhar lá ao fundo. O miúdo queria pizza de queijo e fiambre à americana, com coca-cola.
Para queimar o tempo jogaram ao stop.

- A....

- Stop.

- Letra L

- Ok. Nomes com L?

- Lizandro!

- Quem?

- Ó mãe!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

quem se lembra?


O meu tio levou-me ao cinema Monumental para ir ao cinema.
A primeira vez. Antes da Branca de Neve.
Eu tinha um vestido com flores que a minha tia tinha acabado na noite anterior.
Quando o filme começou materializei-me lá dentro da tela gigante, a fugir do escuro.
Logo no início a mãe do Bambi morreu e eu chorei o resto do filme. O Tambor não me convenceu. Ainda hoje não me convence. O pior foi abrir o jornal on line e ver que o criador da morte da mãe do Bambi morreu. Primeiro pensamento:

- Bem feita.

Segundo pensamento:

- Coitado.

Terceiro pensamento:

- Já não tens quatro anos, Patrícia. Tem respeito pelo senhor. A culpa não é dele.

Ficámos assim.
Não mostrei a notícia ao miúdo ao meu lado, que continua doente. Para quê? Nunca lhe mostrei o Bambi. Só os outros filmes onde as mães também são bruxas, más ou ausentes. Paciência. O trauma é meu.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

a gata a dormir

A gata dorme aos pés do miúdo que continua doente.
Na televisão os desenhos animados japoneses piscam frenéticos.
Há um silêncio na casa que se não tivesse o cheiro da doença seria um bom silêncio.

terça-feira, 15 de abril de 2008

a análise

A enfermeira tem na lapela um tweety. Prepara-se para fazer uma análise de sangue ao miúdo que tem oito anos.
O miúdo choraminga. Diz que talvez amanhã, talvez fosse melhor esperar pelo amanhã.
Com paciência a enfermeira vai acalmando a criança.
Coloca um spray analgésico no braço. Pede segredo:

- Fica só entre nós, sim? porque este spray não serve para isto, está bem?

Enquanto a enfermeira prepara o material, a mãe do miúdo começa a contar:

- 280, 279, 278, 277...

O miúdo repete e fica preso aos olhos da mãe.
A análise está feita.
A mãe e o miúdo continuam:

- 276, 275, 274...

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Pessoa VI

O Poeta passou por mim na sua casa - uma das suas casas em Lisboa - na Coelho da Rocha.
Eu andava de martelo na mão a colocar molduras diversas na parede para a exposição Lugares de Pessoa.
Senti a sua presença, qual gato preto perdido que anda por ali, no jardim.
Pensei em dizer à Inês que o fantasma de Pessoa está ali, a fumar no jardim, obediente às leis de agora, mas depois, quando ela chegou, limitei-me a abraçá-la. Talvez Pessoa tenha visto.

domingo, 13 de abril de 2008

Pessoa V

"Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim..."

Álvaro de Campos in Poesia

sábado, 12 de abril de 2008

Pessoa IV

"(...) Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa vida dividida
Entre a verdadeira e a errada"

Fernando Pessoa in Poesia

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Pessoa III

"Passo e fico, como o Universo".
Alberto Caeiro in Poesia

- A mulher traz os sapatos na mão - sussurou a loira da terceira fila.

- Talvez seja doente - respondeu a do casaco amarelo da segunda fila

- Ou louca - continuou a loira.

- Sim, ou isso. É o mesmo - respondeu a do casaco amarelo da segunda fila.

- Olha, sentou-se e ficou - não resiste a loira.

- Sim, como o Universo - rematou a do casaco amarelo da segunda fila.

A conferência começou e as senhoras calaram-se.
A que trazia os sapatos na mão calçou-se.

Pessoa II

"Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura..."
Alberto Caeiro in Poesia

Ontem à noite na Casa Fernanda Pessoa José Miguel Wisnick mostrou como Schumann pode ser Roberto Carlos, como o mito do pecado está na bíblia, na vida, nas canções mais ou menos bobas. A aula show é uma lição e quem a viu ficou mais rico e mais esperto.
Pessoa, sentado no corredor, fumando um cigarro, ouviu tudo em silêncio.
No final tinha um sorriso miúdo no rosto que vislumbrei por segundos.
Não sei se mais alguém notou a sua presença.
Não importa.
Foi uma boa noite.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Seis dias com Fernando Pessoa I

"Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!"

Álvaro de Campos in Poesia

segunda-feira, 7 de abril de 2008

o mini

O mini deslizou pela auto estrada Cascais-Lisboa com a ligeireza dos destemidos.
Chovia torrencialmente.
Os limpa para-brisas corriam a uma velocidade cujo controlo ainda não possuia totalmente: um toque para cima devagar; dois toques mais depressa; três toques e os limpa para-brisas ameaçam soltar-se e levantar voo para outras paragens.
O mini é castanho cor de chocolate.
Não é a carrinha mini que o meu pai comprou no ano em que eu nasci. É um objecto de moda, de prazer.
Quando cheguei à escola, o meu filho mais novo gritou: Que fixe!
Foi isso que senti o dia inteiro, senti-me fixe.
Apesar da chuva. Por causa do mini.

domingo, 6 de abril de 2008

no ano em que nasci

No ano em que nasci o meu pai comprou uma carrinha mini castanha.
O meu irmão e eu dormíamos no porta bagagens. Não havia cadeirinhas nem conversa sobre segurança.
O primeiro carro do meu pai custou 103 contos, qualquer coisa como 515 euros.
O pai conduzia-o com orgulho, deduzo. Sem carta de condução, acrescentou a minha mãe.
O meu pai levantou-se e foi buscar um dossier. Mostrou-me a factura do mini. Olhámos para a factura como quem olha para uma relíquia. O pai decidiu pescar mais história, mais facturas.
Foi um bom almoço de domingo.

sábado, 5 de abril de 2008

a mudança

Os caixotes empilhados à porta têm lixo. Os caixotes que atrapalham a circulação dentro do apartamento, e que parecem engolir tudo, são para desmanchar, verificar os contéudos, arrumar.
Mudar de casa é descobrir-nos inúteis dentro de um caixote.
Quem somos? de onde fomos? quando é fomos isto que agora nos sobra? Tanto papel e memória de horas que já não sabemos, tanto de nós que deixou de ter qualquer importância.

Mudar de casa é isso - só isso - um espelho atroz do que já nem nos recordemos de ter sido.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

agora mesmo

Agora mesmo a criança suspirou no berço.
Está calor no quarto, a mãe tenta manter-se calma, o pai palra com entusiasmo.
A criança tem dias.
Dorme no berço mínimo.
Ainda sabe tudo sobre o mundo.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

o piano

O miúdo está de costas. A professora ao seu lado.
Tocam um tango antigo, desses que conhecemos sempre.
Cumparsita, esclarece a pauta no piano.
O miúdo toca, as costas magras, os cotovelos encostados ao tronco, como se montasse a cavalo. A professora acompanha com o pé, discreta, sem fazer barulho. Quando chegam ao fim, recomeçam.
Se fecharmos os olhos podemos ver Buenos Aires daqui. Em Lisboa fazem 26 graus e estamos em Abril. O miúdo desliza os dedos nas teclas brancas e pretas, concentrado. Há uma súbita vontade de dançar.

- Outra vez - pede a professora.

O miúdo obedece. A noite vai cair não tarda.
Gostava de ficar aqui.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

ontem no lux

O escritor disse:

- Deixa-o. Por favor. Não suporto ver uma portuguesa feliz.

Na penumbra ruidosa do evento a frase escapou-se e perdeu-se.
É pena.

terça-feira, 1 de abril de 2008

a balsa II

Hoje a bolsa está carregada.
Vejam como desliza, suave, no mar da lagoa.
Há algo invejável no movimento. Percebem?