domingo, 26 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 4

(Senta-se no banco, cansada)

Claro que se eu me suicidar Deus não irá comparecer a esta pequena aula. Mandará alguém? Um anjo caído em desgraça com asas negras? Um anjo jocoso? Ah, eu não acredito em Deus. Não me é conveniente. Lamento. Agora não posso. Quando era mais nova, talvez. Não me debatia com Deus, imaginava os anjos, imaginava-os sem asas, a olhar para mim, a ouvir. Talvez tudo isto tenha a ver com a minha vida, quem sabe? Não consigo acreditar. Na verdade, não acredito por princípio em nada ou ninguém. O bem e o mal têm sempre uma adversativa, um contra argumento, uma outra perspectiva e, no fim, tudo depende. E essa generosidade de factores perturba-me. Sinto-me uma sobrevivente. Como nos relatos que ouvimos das diferentes atrocidades que ocorrem no mundo: pessoas que estiveram em campos de concentração; pessoas que passaram fome; que ficaram órfãos em crianças; pessoas abandonadas; pessoas abusadas. Consigo imaginar a dimensão da tragédia de qualquer um. Imaginar é uma forma de viver. É mais fácil imaginar uma vida a partir do outro, da história do outro. É mais fácil do que construir uma vida. Seja ela qual for. E o mais extraordinário neste decadente, embora avançado, século XXI, é que não temos de conviver para ouvir as histórias dos outros. Basta uma televisão.

(Olha para a televisão)


Ou um computador.

(Olha para o lado e liga o portátil)


Posso ficar bêbada de gente e de histórias a partir destes quadradinhos de tecnologia. Não nos deixam sozinha. Dão-nos sentido. Inspiram-nos. Engordam-nos de nada. De um enorme nada que não visualizamos, mas que nos engana a fome de alma, de substância. Ajudam-nos a relativizar as nossas pequenas desgraças pessoais. Sempre. Olhem agora

(Encara a televisão)

Há estes programas com psicólogos e mulheres bem sucedidas, que falam pausadamente e que explicam teorias sólidas sobre a felicidade. Apelam à nossa vontade de ser feliz. De rir. De ser bem sucedido. Dizem-nos para viver um dia de cada vez. Que a procura da felicidade em si não traz felicidade. Fazem testes! Deve ser uma coisa de inspiração divina, os testes.

(Altera o tom de voz)

Dê uma pontuação de um a sete, sendo sete o mais alto. Quer alterar alguma coisa na sua vida?