segunda-feira, 31 de março de 2008

a balsa

A balsa tem um nome estranho, fora do sítio: extraterrestre III. Observo-a todos os dias. Leva as pessoas das margens da lagoa, ali onde o mar espreita já.
Dizem que os golfinhos entram por aqui.
Vejo-os uma manhã, recortes escuros no mar, dorsos que correspondem ao nosso imaginário.
Estar de férias é isso: uma sombra de paz, uma ideia que construímos de sossego e outros desvios ao caminho.
Não queria voltar para casa à beira do rio.
Prefiria ficar a ver a balsa a ir, devagar, evitando o remoinho e as correntes.
A balsa que se chama extraterrestre III.

quarta-feira, 12 de março de 2008

falta a apenas o tempo


Maryln por Bert Stein.Vi a exposição no Rio de Janeiro. Estava com a minha mãe. Era um dia de sol. Havia risos e coisas boas. A vida real a cores não existia. Só eu e ela, a subir o bondinho, a beber vitamina de abacate, a cortar na casaca, a medir roupa de homem, a comprar livros. Dias por censurar.

domingo, 9 de março de 2008

mata piolhos

Primeiro enfia-se a criança na banheira. Explicamos a existência dos piolhos, eles que preferem viver numa cabeça limpa e, por isso, não há nada que nos indique falta de higiene. Depois coloca-se o shampoo durante 15 minutos, lutando ferozmente com a criança para que o produto não vá parar aos olhos. Se tal acontecer, além da gritaria, é preciso passar "abundamente com água". Ao fim dos 15 minutos começa a tortura com um pequeno pente, com dentes muito fininhos. Imobilizar a criança e passar o pente é apenas mais um passo no cenário irreal de combate aos piolhos. No fim de tudo, temos de explicar à criança que amanhã, à mesma hora, teremos de repetir a dose. Haverá choro e gritos, um verdadeiro ataque de frustração e o potencial amor que a criança nos tem é, por momentos, eliminado com os piolhos. Os mesmos que preferem cabeças limpas e, consequentemente, habitam na vossa cabeça também.

quinta-feira, 6 de março de 2008

não tenho nada a ver com isso

Coisas pequenas, gestos, frases, silêncios. Uma vida inteira de acidentes e escolhas. Podia encolher os ombros e escolher não me ralar, estar calada, ignorar, ser indiferente. Seria melhor? Seria pior.

quarta-feira, 5 de março de 2008

a mãe

Sentiu o coração acelerado e depois a transferência da pulsação para o pescoço. Olhou a criança outra vez e gritou:

- Quantas vezes é que já te disse?

- Desculpa.

_ Não quero as tuas desculpas.

A mãe afastou-se, cada vez mais consciente do ritmo cardíaco. Todas as semanas havia pelo menos duas cenas semelhantes e que acabavam invariavelmente do mesmo modo.

- Desculpa.

- Não quero as tuas desculpas.

Dias mais tarde, no consultório do psiquiatra, a mesma mãe dirá repetidas vezes:

- O mais difícil é ver um filho fazer o mesmo caminho que nós. Dói muito.

terça-feira, 4 de março de 2008

a nossa sombra


Espaço fundador onde nos superamos; heróis do momento a fazer das paredes velas ao vento, do chão trilhos secretos e sabedores de tanta coisa.
A casa que nos sustenta é um enorme palco iluminado para uma vida que contamos.
A casa, que faz de nós melhores, é um espaço de ficção. É chão nosso. Chão de regresso.
Seria difícil não a ter: a felicidade é querer voltar para casa.

(imagem homerv)

segunda-feira, 3 de março de 2008

bang bang

I

E depois, um dia, nunca mais vais acordar. A última imagem nos teus olhos serei eu, eu a sorrir ligeiramente, como um gato manso. Num acaso irónico estarás na cama onde, tantas noites, me tomaste despida. Aproximar-me-ei devagar, em silêncio. Não terás tempo de dizer nada, o reflexo do teu corpo nos meus olhos. E depois, deixo cair a cabeça para a direita, acerto a vista, a direcção, adeus querido.

II

Permaneço a mesma. O meu corpo não se desfez depois do teu. Não me importo com a prisão, atormentam-me apenas as marcas que me deixaste: a tatuagem na orelha esquerda e o brinco de prata que me enfeita o nariz. Todos os dias, em frente ao espelho, tu sorris, plantado no meu rosto em dois sinais impossíveis de apagar. Quem me dera ter-te morto por inteiro.

domingo, 2 de março de 2008

consciência

Na versão original de Pinóquio, o grilo é morto com uma martelada.
Pinóquio mata-o.
É para que saibam.

sábado, 1 de março de 2008

hoje é assim

Não acredito nas imagens, nem nos santos e talvez nem sequer Nele.
Faço a apologia da ilusão, como num grande cenário, barroco, sublime, em tudo o que parece não é, deliberadamente, apenas uma mas mil coisas.