(Triste)
Agora por outras razões. Naquele tempo - parece que foi há tanto tempo - o tempo não tinha qualquer poder sobre nós. A minha tristeza foi suspensa por prazo indeterminado. Viver na minha pele era uma consequência da existência dele e ele era o princípio de um destino que seria nosso e só nosso. Ele dizia:
(Muda de voz)
Preciso de ser abraçado todos os dias.
(Voz normal)
E eu abraçava-o. Com cuidado. Com força. Com tudo o que tinha. Há na entrega ao outro uma beleza ímpar que não se repete. Senti isso. Senti sempre essa beleza quando me beijava. O melhor do sexo passou a ser esse abraço que nos ligava no cansaço, o corpo dele no meu, descaído sobre mim, a minha mão no seu peito, as pernas a tocarem-se; por vezes só um pé no pé. Havia assim uma perfeição muda, suada, animal e descansada das coisas do mundo. Não pensava em nada. Nem mesmo nele. Pensava no meu desejo e na corrida para o prazer as vezes que fosse possível. O nosso sexo era eficaz, julgo-o hoje com a distância de quem não espera retomas, porque era profundamente egoísta. Encarávamos o sexo na procura do êxtase e mais nada. Não me venham com tretas sobre a singularidade do momento, os corpos enlaçados, somos só um no acto e merdas dessas. Nada disso. A perfeição era a conquista antecipada do orgasmo e nessa medida estávamos bem um para o outro porque o fazíamos em separado, usando o corpo do outro como tantas pessoas usam comida. Ter prazer. Deixá-lo durar e procurá-lo novamente. Ele fazia-me sentir adolescente, ninfomaníaca, ousada e, por fim, fodível. Sim, porque uma mulher pode sofrer por esse excesso de preocupação com o sexo alheio e por sentir que o seu falha precocemente. Um sexo estragado. Ineficaz. Sem sabor. Posso não repetir a dose nunca mais. Como é que se diz? Não devemos voltar ao lugar onde fomos felizes. Eu fui muito feliz.
(Suspira)
Não sei se ele foi. Isso agora pouco interessa. Quer dizer... interessa-me apenas a mim porque me devolve ao lugar natural de mulher estragada. É uma ironia, não é? A vida não tem 120 minutos, é um filme que corre vertiginoso e sem guião. Dói e cansa. E no fim? Qual é o objectivo? Vamos reencarnar? Voltar ao princípio ou não resta nada de nós, absolutamente nada quando o corpo se desliga? Às vezes fico a olhar a carne à minha frente e vejo-me. Carne a apodrecer. O tempo não pesa o que nos tornamos, pois não? São os outros que nos medem e pesam, que nos viram e reviram, que nos dão significado. Eu sabia que voltaria a estar só, terrivelmente só.
(Senta-se no banco, faz uma pausa e levanta-se novamente)
De alguma forma inconsciente era claro que a vida não podia ser aquilo e que terminaria. Algures na minha cabeça eu sabia. Sempre soube. Como se sabe que tudo isto...
(Abre os braços para designar a vida)
... é precário, uma projecção mental do ideal. O tal filme que fazemos para nós, uma pitada de melodrama, de comédia e de terror. Tudo sem legendas para que se percam algumas palavras, acções e pensamentos. Ele e eu. Era como se a nossa história fosse um atropelo na ordem das coisas, uma dimensão paralela que se esgotaria por não ser coincidente, por fugir ao padrão, por não ter um carril colectivo onde assentar. Sabendo do fim - sabendo do mal que me podia fazer - deixei os dias correr. E, claro, um dia ele desapareceu. Deixou de ser transparente.
Figueira da Foz, 5 de Março
Há 15 anos