Cara Agustina,
Hoje vi o seu Martinho a rondar o Rijksmuseum em Amesterdão. Fazia-o com passos incertos e quase ridículos por via da chuva que nos deixava os pés molhados, uma tortura para evitar as poças. Martinho tinha aquele ar autoritário mas, talvez perceba isto, uma certa fragilidade que só a idade traz aos homens. Como lhe digo, rondou a fila de turistas com algum desprezo pelos americanos de panamá impermeável colorido que falavam alto e nesse registo nasalado que consegue ser tão inconveniente. A chuva não ajudava. Vi Martinho a colocar na máquina do raio x a sua gabardina bege - clássica, com aqueles cintos que me lembram os do roupão de casa de banho. A realpolitik do terror. Não acha? Martinho comprou o bilhete e atravessou as salas sem pressa, sem olhar para lado nenhum. Eu, na esperança que ele parasse junto do quadro de Catrina Hoogsaet, uma vontade egoísta, só minha.
Rembrandt pintou Catrina quando ambos tinham 50 anos, no ano de 1657, um ano depois de ter declarado falência e ter sido forçado a fechar o seu atelier. A história de Catrina é de uma imensa coragem: casa aos 19 anos para ficar viúva um ano depois. Aos 30 volta a casar, mas a sorte não está com ela. Em conflito com o marido, pede autorização à igreja para se separar. A igreja concorda temporariamente, promovendo a reconciliação. Catrina monta a sua casa, é banida da comunidade, e, até à morte do marido, mantém-se firme: nada de reconciliações. Aos 66 anos fica viúva e volta a casar.
Catrina pertence, hoje, a uma família escocesa, jóia de uma colecção privada. Está no Rijskmuseum de empréstimo. Por vaidade do coleccionador, não duvido.
Segui Martinho com alguma irritação pela sua indiferença. Talvez não saiba nada de Catrina e, só isso, me entristece.
Quando chegámos, por fim, à sala da Ronda da Noite, Martinho seguiu em frente até ao cordão, sem pedir com licença, sem se ralar com a multidão e eu fiquei presa nos salamaleques do costume. Martinho fixou-se no quadro e ali ficou vinte minutos, contados por mim. Não sei o que me comoveu mais. Se ele ali sozinho, a imaginar-se com cinco, sete anos, a vestir a roupa da avó para ser como a pequena Saskia, a luminosa e poderosa criança que carrega a caça pequena à cintura; se a luz que vinha da mão de Rembrandt. Escolho Martinho e, por isso, querida Agustina, a vantagem e o ganho é tudo seu. Daqui, do frio de Amesterdão, a saúdo.