sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 2

(Voz normal)

E depois era vê-la, uma montanha russa de estados de espírito. Imaginem: uma mulher irritada, com as mãos em desassossego, mexendo na cara, coçando a cabeça, o tom de voz esganiçado. Depois dos comprimidos? Vinte minutos depois, outra mulher. Calma e dolente, uma coisa mole, os olhos meio vidrados. A verdade é que os comprimidos eram uma realidade extra, um cenário que a minha mãe procurava compor porque ele nunca tomava um comprimido, tomava dois. E nesse exagero nada inocente procura adormecer para tudo e para todos; procurava uma ausência de si própria sem abandonar o corpo. Lenta e precisamente. Os comprimidos arrancavam-na da matéria da realidade, como quem arranca as vísceras por momentos. Ficava, apenas os miúdos da minha mãe, coisas sem graça a boiar na nossa vida. Não me lembro de ser de outra forma, a receita de sucesso era esta. Em dias de festa a receita era recheada com um xarope de álcool que começava com um gin cortado com limão; depois um vinho encorpado - tinto, sempre tinto – e, para finalizar numa apoteose de gestos que me envergonham até hoje, um copo de whisky, liso, sem água, sem gelo. Um primor. Este é um dos lados, um dos aspectos da maternidade que me deu chão e sustentou a infância. Há outro. Porque a minha mãe, como todas as outras mães, é um bicho universal. Tem segredos só dela. Como compor o cabelo e nunca, por nunca, ficar despenteada, perder a compostura, deixar a ira ganhar corpo no corpo dela, tão bem escondido numa roupa que é, também, o reflexo da ideia que ela tem de si própria. Ela se acha, como dizem os brasileiros. Mas há muito mais sobre a minha mãe... muito mais... porém todo o seu brilho e genialidade se centram neste excesso de generosidade para com os terceiros. Nessa sua capacidade para ouvir. Ouvir os outros. Não para nos ouvir, a mim ou à minha irmã. Não falo do meu pai. Nunca falo do meu pai. Não vale a pena. Mas a minha mãe?

(Muda o tom de voz)


Tetas para todos! Venham, venham ver o leite milagroso da senhora e, por favor, ao saírem, façam o favor de ignorar a filha gorda e deixem uma palavra no livro de honra.