quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 9

(Desliga, por fim, a água, tinha-se esquecido)

Como é que um marido desaparece? Começa por ser em pequenas coisas – as horas que se esqueceu, um jantar em silêncio, algo que não partilha, um pensamento isolado, a vontade de fugir - e depois em concreto já cá não está. Até que me deixou uma mensagem no email a dizer que o amor não podia tudo, que a verdade das coisas era demasiado complexa, que eu o absorvia em demasia. O meu marido acusou-me de ser demais. Mais que a conta. Seria, porventura, tida como um ser especial? Não. No email ele teve o cuidado de sublinhar a minha normalidade. Escreveu assim:

(Muda de voz)

Nada do que fazes é consequente; esgotas-me. Estou cansado de ti e de mim, de nós. Perdoa-me. Talvez eu não seja suficientemente bom para ti. Para nós.

(Voz normal)


Nós.

(Começa a cortar cebola com profissionalismo e, num gesto de fúria, começa a chorar)


Sim. Tudo passa. É uma fase. É assim. E eu estou tão cansada de combater a fase, a normalidade e, claro, o regresso da tristeza. Ninguém me quer? Tenho algum defeito inultrapassável? Não agrado? Onde? Na cama? No que digo? É a minha roupa? Ou sou só eu? Só eu...

(Novo anúncio sonoro de email. Grita)


Larguem-me! Não quero saber.

(Recompõe-se, vai ao computador, limpa as mãos a uma toalha de cozinha)

Sim, ainda estou viva e funcional. É bom ter amigos que perguntam. Mesmo que tenham mentido e traído. Mesmo que me digam uma coisa e pensem o contrário. Estou convencida que é essa a natureza dos amigos. Para o bem e para o mal, vão aplacando a nossa realidade, servindo de almofada para as pancadas. Se nós deixarmos, claro. Porque se não deixarmos, os amigos afastam-se.

(Muda de voz)


Não há paciência para ela, coitada. Está obcecada. Não atende o telefone, não devolve mensagens. Gosto muito dela mas não tenho vida para isto.

(Voz normal)


Se não disseram isto, disseram algo de semelhante e os poucos amigos que eu tinha ficaram do outro lado do muro, numa outra realidade, cansados das minhas lamúrias, de se sentirem impotentes na ajuda que queriam prestar-me. Queriam: formatar-me para outros dias; decorar-me de boa disposição e pensamentos positivos; afastar-me de ele como quem afasta uma criança do fogo. Os meus amigos estavam convencidos da sua sapiência sentimental, sabiam melhor e mais do que eu. O que até é provável, se querem saber.


(Regressa ao computador e responde à mensagem)


Fico aqui a olhar as letras no computador, o nome dele e a pensar na esperança como a primeira droga da humanidade. Eu tenho esperança que o passado possa ter sido diferente. Quer dizer, tenho esperança que tivesse tido a lucidez de mudar o que obviamente não mudei. Sofro disso. Do passado. E tenho os emails deles para me recordar, não é? Houve uma altura em que o ridículo de ser quem sou se manifestava na partilha destes emails com os tais amigos e amigas.

(Muda de voz)


Meu Deus! Como é que tu aturas isto? Tu não vês que ele está a gozar contigo? Não te atrevas a responder? Porque é que não experimentas fazer terapia?

(Fecha o computador e volta à voz normal)


Não quis fazer terapia, lamento. Para me confessar vou ao padre, porque sempre é mais económico e, além disso, tenho salvação. Duas aves Maria e um pai nosso, dois rosário e uma novena. Coisas de Deus, o tal em que não acredito, mas que tem um sistema muito funcional e ao qual podemos recorrer em caso de desespero. Fazer terapia seria querer mudar a realidade e isso, ao contrário do que todos possam imaginar, eu não queria, nem quero. Voltamos à metáfora da merda.

(De faca na mão)

Quando o mundo desmoronava à minha volta, a minha casa ficou mais vazia, sem os livros dele, os sapatos dele, as fotografias dele, os jornais desportivos dele e a enorme estatueta que o pai lhe ofereceu quando acabou o curso. Houve um período de assimilação. Não era um período de luto, porque me recusava a acreditar na nossa morte. Era apenas um desvio. Ele tinha saído para pensar. Para ter tempo, para pensar, para olhar o mundo lá fora. Acabaria por perceber com clareza todas as minhas virtudes e a nobreza do meu amor. Havia algo de cavalheiresco nisto tudo e o cavaleiro andante era eu. Fui durante muito tempo. Mandava-lhe mensagens e ele respondia sempre. Sempre que o fazia o meu coração batia mais. Batia melhor. O coração é um músculo interessante, com uma agenda e orientação só dele e o meu batia com o nome dele a piscar no computador, com o seu toque no telemóvel. Podia ser para tratar de um pormenor sem significado verdadeiro para a rotação do planeta, mas ele era o sol e eu a terra e nada me fazia mover desta condição. Ele ligava porque tinha esquecido um extracto do banco. E eu media as suas palavras. Todas. Analisava os verbos aplicados, os adjectivos, as pausas, as entoações a forma como se despedias. Era patético. No mínimo. Isto já foi há algum tempo. Mas continua. De alguma forma. Porque eu acho ainda que o meu passado se vai transformar e o meu marido vai voltar, comer a sopa, o caril e os bolinhos salpicados com noz. Eu serei uma esposa perfeita.

( Senta-se, exausta).

Tenho tanta pena de mim. Às vezes. Como agora.

(Levanta-se)

Outras vezes não, perdoem-me, mas não, tenho pena dele, porque não entendeu nada de nada, nada de mim, nada do amor. Nas suas mensagens vou intuindo que não está bem, que precisa de colo e que acha que legitimamente o pode encontrar aqui. O que aconteceu quando ele decidiu voltar? Duas semanas depois do abandono chegou com um saco do ginásio e disse outra vez:

(Muda de voz)


Preciso de ser abraçado todos os dias.

(Voz normal)

Não lhe fiz perguntas e quando fiz, por fim, eram todas sobre mim e lamento isso. Não devia ter querido saber se o problema era meu, se era eu, a minha cabeça, o meu corpo, mas o que querem? A insegurança mata e mata mais depressa quando estamos sozinhos e temos tempo para pensar. Ele riu-se muito, ainda me lembro do tom do seu riso - não sei hoje se jocoso, se genuíno - ele esticado na cama, a sua perna em cima da minha. O conforto da conjugalidade pode ser apreciado nesses gestos depois do coito, sabem? Sim, devem saber. O casamento é também isso, o momento em que nos abraçamos depois do sexo. E naquele momento em que perguntei, chorosa, sem um pingo de dignidade pessoal, sem nada para esconder, com as minhas armas depostas, ele riu-se e desvalorizou o meu desgosto. Deu-lhe uma não importância e assim encolheu-me, diminui-me, amachucou-me e, já insignificante, pôs-me no bolso. No dia seguinte saiu para o trabalho e levou o saco. Não perguntei nada. Fiz jantar, acendi velas. Fiz lombo recheado com presunto e queijo, regado com vinho do porto, e para acompanhar puré de castanhas. Estava, asseguro-vos, divinal. Comi-o todo.