sábado, 31 de janeiro de 2009

Crónica: o sétimo despudor

Dizem que a comunicação social está em crise. Gradualmente, accionistas angolanos rondam os baluartes da nossa sofrida democracia, milionários que perderam muito dinheiro na banca e na bolsa. Em nome do negócio, os jornais portugueses estão prontos a prostituir-se. Quem paga mais? E se for o senhor do petróleo e dos diamantes? Teremos qualquer dificuldade em aceitá-lo no conselho de administração, apesar de ser contra a liberdade de expressão, a riqueza generalizada e a justiça social? Porque não? Afinal, o que se passa na terrinha do futuro accionista, mala louis vuitton e relógio dourado a condizer, é indiferente à nossa realidade. Está longe, tão longe que não faz mossa.
Tudo isto é que eu deveria dizer hoje na reunião, mas só de pensar que o meu emprego é tão precário como o dos outros, prefiro o silêncio eloquente de quem “come e cala”. Ali ao lado, no outro grupo de media, são mais cem que irão para a rua num despedimento colectivo cujos contornos de desgraça posso apenas imaginar.
Perdoem-me, mas serei um delegado sindical como todos os outros: muita conversa, tentativa e depois negociação. Ameaçar não serve de nada, não tenho com que ameaçar. Vou dizer o quê? Se não aceitarem as nossas condições faremos greve? Numa redacção com tanta gente o jornal aparecia na mesma, estou certo. Nem que fosse preciso recorrer às agências de notícias e outras coisas que para aí há.
Temos de ser compreensivos. O patrão perdeu dinheiro. O patrão investiu mal. O patrão viveu na ilusão, a tal ilusão que não ilude o Presidente da República, ele que é um homem sério e estruturado na verdade das coisas. Nuas e cruas. Nada de ostentação ou de sonho. Tudo isso pode levar – leva, fatalmente – a rescisões amigáveis (ou nem por isso) e à aceitação de accionistas menos... Como dizer sem ir parar a uma lista negra qualquer? Bom, accionistas menos nacionais, mais tropicais. Que importa que esses accionistas sejam o contrário do que a comunicação social deveria ser? Ah, balelas em pleno século XXI não ficam bem. A democracia é isso, podermos ter como sócios quem quisermos, mesmo que sejam o exemplo máximo do Mal que um dia combatemos. A memória é tão curta e, no fim de contas, a crise deve ser um bom negócio. O patrão irá ganhar novamente. Investir e, depois sem resistir a uma tentação, o patrão irá iludir-se. E tudo volta a ser como dantes. Ou não.

(Crónica publicada no semanário económico de 31 janeiro de 2009

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

4 mulheres noutro carro e um espião

As avenidas vazias e sem semáforos de Brasília mantêm-nos a 60km à hora. São 3 e 20 da manhã cá, duas horas mais tarde em Lisboa. As 4 mulheres dentro do carro, conduzidas por um homem calado, falam e riem e dizem e desdizem. Há ameaça de morte, "bradação" para o Senhor e outras coisas que brasileiro soam muito melhor.
De repente, a mulher sentada no lugar da frente encara o condutor e grita:

- Virgem Maria! E você está aqui te espião.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

desliga tu, por favor

O miúdo, ao telefone, do outro lado do imenso e saudoso atlântico diz-me:

- Mãe, tenho que te dizer uma coisa. Eu não gosto de ser eu a desligar o telefone. Desliga tu, por favor.

O meu coração partiu-se e desliguei.

Carta para ti

Meu amor
Aqui são cinco da manhã. Faz calor lá fora. Não vi ainda o céu mítico e azul de Brasília. Há um oleado cinzento de tristeza que cheira a saudade. Hoje a Adriana Calcanhoto cantou as nossas músicas todas e eu senti que as lágrimas seriam maiores do que o lago artificial que Lúcio Costa imaginou para este fim de mundo. As pessoas são gentis. São carinhosas. Há qualquer coisa de nos prende, a espontaneidade, a coisa física do toque. Vou coleccionado histórias para te contar. A do maestro, meio zonzo, às escuras no quarto que se despe e julgando entrar na casa de banho sai para o corredor do hotel e a porta do quarto se fecha. A do advogado que salvou duas mulheres que mataram os maridos (uma delas matou o desgraçado com sete machadadas). A da ex que fica rindo do ex e da actual. A das filhas menores que pregam partidas e ficam "inventando rolos". A da cocaína brasileira que é de menor qualidade por razões insuspeitas, embora cientificamente comprovadas (olha o advérbio de modo!). A do escritor que "deu" para todas e mais umas e descobriu que, afinal, o sexo não tinha o menor prazer. Prazer era apenas e só a sedução. A do vice presidente que esteve 17 horas na sala de operações e de todas as conspirações políticas para o substituir. A do homem que, depois de 18 anos de casamento, se divorciou e decidiu tirar um curso de massagens de dois anos com o objectivo único de dar prazer às mulheres. Da Inês que respondeu brilhantemente a tudo, mesmo às nove da manhã a jornalistas que não devem nada à cultura. Do silêncio do quarto e da falta enorme que me fazes.
Vou tomar um comprimido para dormir e esperar acordar depois do meio dia. Irei, de seguida, comer um "misto quente" e um "suco" de abacaxi com hortelã. E o programa continua. The show must go on, não é? É o que dizem.
Beijos de amor

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O infeliz

O infeliz conduzia as quatro mulheres.
Tinha sido uma noite animada que agora terminava naquilo: quatro mulheres massacrando o infeliz do lado do Lago, fora do plano piloto da cidade, na zona das vivendas grã finas de Brasília. O homem conduzia nas avenidas vazias.
O telemóvel tocou e as quatro mulheres desataram a rir e a inventar uma história.
O infeliz não atendeu a chamada e foi abanando a cabeça. No fim, já no hotel, disse:

- Agora eu vou em silêncio até ao elevador e não falamos mais. Pode ser?

Pode.
Amanhã há mais.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Crónica: Isso agora não interessa nada

A cultura é muito complexa. Não tenham dúvida sobre isto. Não basta ter dinheiro. É preciso ter pessoas, as pessoas certas, os especialistas que nos aconselham. Ouvi-los. Ouvir é simpático. Pagar-lhes, ouvi-los, segui-los – deste modo, no futuro imediato, não irão para os jornais dizer mal de nós, do nosso gabinete, das nossas pobres ideias. O ideal na cultura é contratar meia dúzia de iluminados e deixá-los ter várias ideias para podermos dizer que são nossas. Ideias que se transformam em vários milagres de euros de que os mesmos especialistas precisam para pensar, teorizar, para fazer performances e exposições extraordinárias que não são para o povinho, mas enfim, quem quer dar cultura ao povinho? O povinho tem a cultura do centro comercial, tem as festas da cidade e o reveillon no terreiro do paço, tem o futebol aos domingos no estádio e todos os dias na televisão. O povinho quer lá saber da cultura. Sobretudo a dos especialistas, tão conceptual e profunda, tão cheia de si e de mais cinco que são os amigos que os especialistas têm. Contratei-os com a mesma legitimidade dos meus antecessores. Aprendi com Frank Sinatra: o que faz uma grande estrela é cantar sempre a mesma coisa. Eu fui buscar os mesmos especialistas. Torna tudo mais fácil. E a comunicação social já os conhece, sabe quem são, têm créditos no mercado, para quê pensar eu, pobre de mim, em ideias inovadoras? Não há nada que seja original, até eu sei esta citação, julgo que de uma autora francesa qualquer. Como diz a Teresa Guilherme, isso agora não interessa nada. Tenho as propostas sábias e milionárias, sei o que dizer graças a esta assessora nova, discreta, com a qual ainda não embirrei e o ano começa bem. Muito bem. A cultura afinal não pode ser mais difícil que a educação. Claro que para educar é preciso cultura. Ou será ao contrário? O melhor será escovar o cabelo para irrigar o cérebro e rezar para que não me façam perguntas difíceis e para que me reconheçam, já agora. É terrível para a auto estima ser-se confundida, sobretudo quando se dá tudo pela Administração Pública.

(Crónica publicada no Semanário Económico de 24 de Janeiro de 200))

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Maria Stuart

"Mais fácil fora que se acomodassem a água e o fogo,
que amorosamente cordeiro e tigre se beijassem...
entre nós as duas não haverá conciliação que valha"
Maria Stuart, rainha da Escócia

Uma peça de Schiller com tradução de Manuel Bandeira, interpretada por Julia Lemmertz e Clarice Niskier e um elenco de 13 actores maravilhosos. Três horas de peça no centro cultural do banco do Brasil, uma experiência única. Invejável.
No fim da peça, depois do jantar no hotel, os actores "bancaram esgoto" na porta do hotel para fumar e beber vinho. A conversa não tinha fim e o céu estranho da cidade se encheu de uma gargalhada luso-brasileira onde todos fomos, somos, apenas pessoas com histórias para contar. Apesar de tudo, há dias felizes.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Normal

A menina mexia nas unhas pintadas de verniz brilhante.
Tinha estendido a palma da mão para indicar a idade.
Ela quis saber se eu falava espanhol. Perguntei:

- E tu? Falas espanhol?

E ela riu-se e encolheu-se num jeito mais de menina ainda e respondeu:

- Eu falo normal.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Brasília

Brasília, como a Figueira da Foz, é um décor.
Um misto de alentejo com ficção científica.
Chovia ontem sem dó.
Sobre a nova ponte sobre o lago artificial, Niemeyer terá dito recentemente:

- Muita ponte para pouco lago.

Até pode ser que sim, mas a verdade é que a ponte é um dragão iluminado que apenas perturba um pouco mais o cenário e tudo isso é de uma beleza estranha e perturbadora. Brasília é o anti-Brasil, sem qualquer dúvida. O projecto de cidade fará 50 anos, apenas isso, daqui a três. É um outro planeta no nosso planeta.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Byblos

Dois homens do lixo empurravam diligentemente os seus carrinhos pela rua, ali perto das Amoreiras. Junto à montra da Byblos, decidiram partilhar um cigarro.
- Estes fecharam.
- Ah sim?
- Li para aí num jornal que alguém deitou fora.
- E fechou porquê?
- Por falta de verbas.
- Então, mas o dono não era rico?
- Isso não sei. Parece que o investimento foi muito grande.
- Pois, quem tudo quer, tudo perde.
- É uma livraria.
- Sim, e quem tem tempo para livros?
- Eu não.
- Eu também não.
- Aqui na montra havia uma espécie de computador, para encomendar livros e ver o que os que tinham.
- Muito à frente.
- E olha que a loja era muito grande, até tinha um restaurante lá em cima.
- E as pessoas que trabalhavam aqui?
- Foram para o olho da rua.
- Pois, e têm fundo de desemprego? O meu cunhado viu a empresa falir e ficou sem um tostão, o patrão nunca tinha pago nada à Segurança Social.
- Deve ser da crise.
- Qual crise? Eu desde que me lembro que oiço falar da crise. E já tenho 44 anos.
- Mas agora está pior. Tu não vês os jornais? Os bancos a precisar de dinheiro do Estado, a economia na Alemanha que anda mal... Até os Estados Unidos. Tiveram esta reviravolta com o Obama, mas o homem não vai fazer milagres de um dia para o outro.
- Eu cá acho que o vão matar.
- Achas?
- É cá uma ideia que eu tenho.
- Pode ser.
- É por isso que é importante saber quem é o vice presidente.
- Esse não sei quem é.
- É um branco, já entradote, Joe qualquer coisa. Já tinha tentado candidatar-se a presidente e não teve sorte.
- Hum. A América fica longe.
- Muito longe.
- Ainda bem.
- Porquê?
- Porque já temos problemas que cheguem. E os americanos são muitos.
Os dois homens continuaram rumo ao Largo do Rato. Os carrinhos a hesitar pela calçada, gemendo levemente. Fazia frio em Lisboa, coisas de Janeiro. Passou um cão castanho e branco que os farejou e eles sorriram. Os restos das iluminações de natal não lhes valeram considerações e, por isso, não falaram mais nessa noite. Não era preciso.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Patrícia

A minha Patrícia vai amanhã para Israel em reportagem.
Digo-lhe que é maravilhoso.
O meu coração encolhe para aquela dimensão ridícula da ervilha.
E depois passa.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

caderno vermelho

Então ele abriu o caderno vermelho, um caderno mínimo, com folhas finas, folhas de papel de bíblia douradas na lombada e mostrou-me a lista do seus mortos. E, em letra miúda, estavam os nomes alinhados de todas as pessoas que lhe tinham morrido. Fiquei de lágrimas nos olhos e disfarcei. Não quero pensar nisso.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Crónica: Ser Sócrates

Sócrates olhou à sua volta, suspirou, sentiu saudades do candeeiro com asinhas que uma vez compusera o seu gabinete. Ninguém imagina o trabalho que isto dá, pensou filosoficamente. Na mesa, entre um cinzeiro que já não usa, desenhado pelo Siza, e uma caneta de ouro, oferta da mãe aquando da sua vitória, estava um dossier com as sondagens do mês. Índices de popularidade, de eficácia de comunicação, de aprovação e chumbo. Podia mudar o Ministro da Cultura, mas não posso. O Berardo gosta dele. Podia mudar a Maria de Lurdes para a Saúde, mas o lobby dos médicos e das farmácias caia-me em cima. Podia promover alguém inteligente, alguém que fosse passível de receber elogios do professor Marcelo ao domingo à noite. Também podia ligar ao Durão Barroso e ver qual a viabilidade de um cargo internacional. Seria bom mudar de ares. O António Guterres com aquela coisa dos refugiados já tem uma foto com a Angelina Jolie. O máximo que eu tenho é um ídolo desportivo, lamentou-se Sócrates, prosseguindo no seu monólogo interior. Nem vale a pena pensar nisso. Entregara a sua liberdade ao partido, a uma ideia melhor.
Nisto o telefone piscou, um telefone diferente dos outros e Sócrates voltou a suspirar. Atendeu com os salamaleques devidos e pela janela observou dois polícias fumando um cigarro. Isso é proibido, apeteceu-lhe gritar, mas absteve-se, de nada servia. Desligou o telefone com palavras de compromisso, eficazes, funcionais, pragmáticas o suficiente para lhe conferir autoridade a si e ao seu posto. O país não o compreendia. Era triste. O olhar pousou novamente nas sondagens. Tanto trabalho para quê? Para ganhar um lugar na História, não tinha dúvidas sobre isso. Agora que já ninguém questiona a licenciatura e outras coisas menos simpáticas, será que já tenho o meu poiso ao lado do Mário Soares e afins? Ou será que ainda tenho que me esforçar mais? As sondagens olhavam de frente, curvas descendentes, incompreensíveis, a rirem-se para ele, a dizerem: vai trabalhar, pá.

(Crónica publicada no Semanário Económico a 17 de Janeiro de 2009)

sábado, 17 de janeiro de 2009

Teresa

Hoje faleceu a Teresa. Imagino que envolvo o Rui e os miúdos num grande abraço.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Jorge Colombo


O Jorge coçava a barba que deixou crescer e alinhava as fotografias. Mote: Álvaro de Campos. Local: Casa Fernando Pessoa. O som destruído da banda sonora do Elvis não vingava o suficiente, alguém tinha uma aula de piano no piso de baixo. As meninas da Casa esfregavam com uma esfregona a cera do chão, a Inês deslizava com os sapatos de salto alto pelo chão. Havia aparas de papel e outras coisas espalhadas. O Francisco atendia o telemóvel sempre com aquele ar calmo de quem não se irá perturbar com nada, uma convicção só dele. Queimei a mão a tentar colocar o foco de luz para cima. O Jorge tinha um lenço dobrado em quatro, um lenço invulgarmente cavalheiresco de tecido suave. Faltavam três horas para a inauguração. Lisboa revisitada começou ontem. O fantasma de Fernando Pessoa, escapando aos sentidos extra do gato residente na Casa, passou por ali a espreitar e depois encolheu os ombros numa surpresa e deteve-se.
Foi um bom momento.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

The divine comedy

I Was Born Yesterday

I… I was born yesterday
And I believe all that you say
I have no choice
I must obey you
Is this the first or the second day
Of the rest of my life
Well hey
Why should I care either way
If what you say is true?

Saturday morning, 18th of December
I cannot remember
The last time that I saw such a young ballerina
In love with the loveless
In tune with a tuneless old upright piano
Standing en pointe
Going through each position with gentle precision
She measures each movement
Her classical features and elegant waistline
Are going to waste while she pleases her parents

What if they die on the road to Rathmines
Where a dog in two minds times his run to perfection
An orphan at last,
She’d be sick in the loo-bowl
Then go to the funeral and cry by the graveside
And then sleep with the first man she sees
And she’d catch some disease
Which she would give to her doctor
She’d cook her own breakfast, and she’d cook his as well
And both get on swell
Even though he was married

You are a part of me
I am a part of you
Why should I let you walk all over me?
All over me

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

dias

Às vezes uma pessoa aguenta, outras vezes dói.

Ela disse esta frase com o fio de tristeza que lhe restava, como uma força extra arrancada sabe-se lá de onde. Fiquei ali a pensar naquilo e a ver os olhos azuis a diminuir. Se me fosse possível mudava-lhe o mundo.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

a morte

O miúdo compreendeu hoje que a morte existe. Que faz doer e aperta o coração de quem fica. Chorou muito ao meu colo. Desconsolado. Queria saber:

- Quem inventou isto?

Expliquei-lhe as coisas que as mães explicam aos filhos, com calma e carinho, dizendo-lhe para chorar o que tivesse vontade. Já não é um pequenino. É um semi pequenino.

ervilhas com ovos

A minha mãe trouxe ervilhas com ovos. Há pouco coloquei-as no frigorífico de uma forma quase amorosa, antecipando o jantar. Depois fiquei a ouvir os miúdos respirar. Não estou na fase de contar carneiros, mas muito próximo. Podia pegar nos livros que se acumulam perto da cama, junto à mesa de cabeceira, mas o cansaço que tenho não mo permite. Fico só a ouvir a respiração deles ao longe, nos quartos, e todo o silêncio da casa.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

temos pena

ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh

(há postagens mais interessantes para quem quiser aqui em baixo)

domingo, 11 de janeiro de 2009

Crónica: uns e os outros

O que acontece é que viver em guerra não é viver. Eu sou judia e sou palestiniana. Sou israelita. Vivo aqui. Optei por isto. E isto são rockets e sentimentos de medo e pânico de fazer a boca secar. São pesadelos sobre o futuro que pode não chegar. Vivemos em extremos. Todos os dias como se fosse o último. Há anos que é isto. Quando na comunidade internacional falam em tréguas esboço um sorriso. Quando vejo a CNN mudo de canal. Nos dias de folga, se os há, leio poesia no refúgio e vejo as crianças da minha rua a entender os sinais de guerra com uma clareza extraordinária. Há muita coisa que não entendo. Viver aqui sempre foi estranho, é verdade. É um deserto que nunca deixará de ser duro e cruel. Estamos destinados à guerra, disse-me uma senhora de idade há uns dias. Disse-me isto baixinho, as duas à espera de reforços, a ver se o marido sobrevivia. Atravesso as cidades com a ambulância em estado de emergência. Vivo com as mãos cheias de sangue. Sangue de uns e de outros. Quando a agulha entra num braço, qualquer braço, desaperto o meu garrote com eficácia e vejo com transparência o que somos: iguais por dentro, o mesmo sangue, as mesmas vísceras, cada órgão do corpo a reclamar uma identidade única e universal, por ser apenas humana. Nada mais. Custa-me pegar nas crianças. Vê-las mortas, para lá de um qualquer socorro. Vou para onde me chamarem. Atendo qualquer um. Tenho um distintivo internacional que me confere essa legitimidade: sou a favor da salvação. Sou quase Deus aqui na terra onde Deus viu o seu Filho pedir perdão por nós e morrer uma morte horrível. Todas as mortes são horríveis. A violência tem esse condão de nos petrificar, contudo não nos isenta dos actos posteriores, das réplicas que, sendo em número suficiente, nos deixam a bradar de horror ao mesmo tempo que as prolongamos à exaustão. Quem começou? Quem tem direito a quê? Quem violou regras? O estado do mundo é o estado deste deserto. Confuso. Paranóico. Cruel. Prepotente. Pobre. Rico. Banal. Em guerra. Uns com os outros, apesar de o sangue jorrar da mesma cor.

(Crónica publicado a 10 de Janeiro 2009 no Semanário Económico)

sábado, 10 de janeiro de 2009

Stomp em familia

Ocupámos uma fila no Auditório dos Oceanos e foi rir e bater palmas, gritar e bater com o pé. Pela segunda vez alguns, pela quarta outros, pela primeira outros ainda. O que é que interessa o número de vezes? nada. Os Stomp são sempre bons. Sempre. E é bom estarmos todos juntos. Um bom começo de fim de semana.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

a 4 mãos

Decidimos aceitar o desafio da revista portfolio e escrever um conto a várias mãos.
O resultado estará nas bancas a partir de Março, digo eu.
Coube-me o final do texto, por isso quando recebi as três partes feitas, pensei:

- Estou tramada.

O Zé Luís Peixoto termina o seu excerto com um personagem que se apresenta e diz o nome:

- Patrícia.

Pensei outra vez o quanto estava lixada.
Reli o texto da Maria do Rosário Pedreira, do Valter Hugo Mãe e do Zé Luís. Resolvi o problema e respirei fundo. Liguei ao Zé Luís e rimo-nos. E ele, em alentejano:

- Foi divertido, pá, estou contente.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

a defesa da moral de Kohlberg

Em linhas gerais o pensador considerava que a Justiça era o único critério de avaliação para um desenvolvimento moral colectivo ou pessoal.
Na verdade era um enorme chato e os pós modernistas divertiram-se a destruir a sua meta de ideal. Julgo que o consideravam ingénuo. E, de certa forma, era-o.
Dizia ela: "Conhece o bem e farás bem".
Na vida real a cores, a teoria é uma coisa, a prática outra completamente diferente. Todos os dias tenho provas desta pequena teoria caseira. E, depois de ter engolido um sapo ou outro, sobrevivido a manada ou outra, há assombros de bondade espantosos. A minha vizinha trouxe-me uma prenda. A senhora do cabeleireiro comprou bolas de neve por saber que sou viciada. O Francisco tomou o pequeno almoço comigo e ouviu-me. O Nuno mandou-me mensagens a saber se sobrevivo ao frio. A Fonseca disse-me que amanhã é outro dia. O José Eduardo chegou a Amesterdão e mandou dizer que já tinha saudades. A Inês saiu do dentista, ainda anestesiada, a saber de mim, apesar das dores que tinha. O Paulinho preocupou-se em saber de nós. O meu pai e a minha mãe idem idem. O meu irmão está melhor da gripe. O Sebastião disse: adoro-te, mãe. E Micas decidiu que quando eu tiver 70 anos fica a ver séries de televisão antigas comigo.
O meu marido deu-me um grande abraço em silêncio.
O que é que isto tem a ver com Kohlberg? Absolutamente nada e tudo. Odeio os pós-modernistas.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

reunião a quatro

O telefone tocou, ela respondeu, as outras pessoas calaram-se.
Olhando para o lado, viu a braguilha aberta do homem à sua frente e, por delicadeza, enquanto aguardava o desfecho do telefonema da chefe, mandou-lhe uma mensagem escrita, teclando no telefone com rapidez:

- Tens a braguilha aberta.

Ouviu-se um aviso de recepção de mensagem, o homem espreitou o telemóvel que tinha na mão e disse baixinho:

- Foda-se.

O telefonema terminou e a reunião continuou.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

simpatia dos Reis

Descascar uma romã, escolher 3 bagos, trincar cada uma e dizer:

Gaspar, Melchior e Baltazar, valei-me desta semente para ter e para dar.

Colocam-se as 3 bagas numa nota de qualquer valor, dobra-se o mais possível e guarda-se na carteira. No ano seguinte repete-se.
O dinheiro não faltará.
Se alguém quiser informar o Sócrates, por favor, o dia dos Reis é até à meia noite.

hoje alerta de frio

Em Lisboa algumas estações de metropolitano ficarão abertas durante a noite.
Os bombeiros estão de alerta. Se quiser doar roupa quente para os sem-abrigo, vá à junta de freguesia da sua área de residência. Ajudar não custa nada.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Crónica

Não nos enxotam daqui, sabe? Nem pensar. Aqui estamos protegidos. A polícia olha por nós. Tomámos banho ali na casa de banho. Está ver a entrada para o parque de estacionamento? Do outro lado há uma casa de banho. Eu guardo os meus cartões aqui, os cobertores no fim, entalados, para que não mos roubem. Aqui ninguém rouba, mas, enfim, é uma precaução que não custa. No outro dia - eu não estava, trabalho ali fora a arrumar carros – veio uma equipa da Câmara Municipal de Lisboa. Os meus colegas pensaram que era para nos mandar embora aqui da Gare. Conversaram e deixaram indicações para um centro de reorientação, acho que é assim que lhe chamam. Para quem quiser fazer outra vida. Eu não quero. Não tenciono lá ir. Gosto de estar aqui. É abrigado, não tem correntes de ar. Lá em cima na plataforma faz muito frio e a chuva é terrível. Já sei que a plataforma foi desenhada por um arquitecto famoso. É uma merda na mesma. No Inverno, quem fica na plataforma à espera do comboio farta-se de sofrer. Faz um efeito bonito, à noite, vista à distância. Só isso.
Aqui dentro é bom. Temos a polícia por perto. Há sítios muito quentes. No outro dia, montaram aqui uma exposição sobre a Terceira Via do Tejo e comboios de alta velocidade. Fui lá espreitar. Sim, que eu sei ler. Ouvi uns senhores dizer que era preciso tirar os sem-abrigo da Gare do Oriente. Estive quase para perguntar que mal é que lhes fazíamos. Como fervo em pouca água, deixei-me estar. Como é que vim aqui parar? Não tenho família, a minha mulher deixou-me. De repente, a rua pareceu-me o sítio mais certo para estar. A rua é como eu, não tem regras, nem expectativas. Há aqui quem tenha perdido tudo. Quem seja alcoólico ou tenha problemas com drogas. Há gente de Leste e até há casais. Dizem que a Câmara vai passar a ter casas onde os casais podem dormir juntos. Agora que está frio, dormimos todos juntos, apertadinhos. Não é como ter sexo, mas é bom. Uma fotografia para o jornal? Não. Eu ainda tenho a minha dignidade.

(crónica publicada no Semanário Económico de 3 de Janeiro de 2009)

domingo, 4 de janeiro de 2009

amanhã é outro dia

Podia ficar contigo, atravessada na cama, embrulhada no cobertor branco, uma vida inteira. Amanhã voltamos ao trabalho e tudo ficará para depois. Há uma certa tristeza nisso. Não quero pensar muito. Nem pouco. Queira só ficar ali, retida no teu abraço.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Carta de Mãe (Alentejana)...

Mê querido filho,
Ponho-te estas poucas linhas para saberes que estou
viva. Escrevo devagar por que sei que não gostas de ler depressa.

Se receberes esta carta, é porque chegou. Se ela não chegar, avisa-me que
eu mando-te outra.

Tê pai leu no jornal que a maioria dos acidentes ocorrem a 1km de casa.
Assim, mudámo-nos para mais longe.

Sobre o casaco que querias, o tê tio disse que seria muito caro mandar-to
pelo correio por causa dos botões de ferro que pesam muito.
Assim arranquei os botões e puse-os no bolso. Quando chegar aí, prega-os de
novo.

No outro dia, houve uma explosão na botija de gás aqui na cozinha. O pai
e eu fomos atirados pelo ar e saímos fora de casa. Que emoção: foi a
primeira vez em muitos anos que o tê pai e eu saímos juntos.

Sobre o nosso cão, o Joli, anteontem foi atropelado e tiveram de lhe
cortar o rabo, por isso toma cuidado quando atravessares a rua.

Na semana passada, o médico veio visitar-me e colocou na minha boca um
tubo de vidro. Disse para ficar com ele por duas horas sem falar. O teu
pai ofereceu-se para comprar o tubo.

Tua irmã Maria vai ser mãe, mas ainda não sabemos se é menino ou menina,
portanto não sei se vais ser tio ou tia.

O teu irmão António deu-me muito trabalho hoje. Fechou o carro e deixou
as chaves lá dentro. Tive que ir a casa, pegar a suplente para a abrir.
Por sorte, cheguei antes de começar a chuva, pois a capota estava em
baixo.

Se vires a Dona Esmeralda, diz-lhe que mando lembranças. Se não a vires,
não digas nada.

Tua Mãe Marta

PS: Era para te mandar os 100 euros que me pediste, mas quando me lembrei
já tinha fechado o envelope.

(esta carta/anedota foi-me enviada pelo meu pai e deve andar por aí a circular na net)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

VIVER DE AMOR

pra se viver do amor
há que esquecer o amor
há que se amar
sem amar
sem prazer
e com despertador
como um funcionário

há que penar no amor
pra se ganhar no amor
há que apanhar
e sangrar
e suar
como um trabalhador

ali, o amor
jamais foi um sonho
o amor, eu bem sei
já provei
e é um veneno medonho

é por isso que se há de entender
que o amor não é um ócio
e compreender
que o amor não é um vício
o amor é sacrifício
o amor é sacerdócio

amar
e iluminar a dor
como um missionário

(canção de Chico Buarque para Ópera do Malandro, 1978)