domingo, 30 de novembro de 2008

bastidores

Entrámos pela rampa e chovia sem dó. Os miúdos apressados por espreitar tudo. Atrás do palco, em cima de cabos, junto a caixas indefinidas, viram os músicos subir as escadas e depois Carlos do Carmo chegou com a Judite. Os miúdos permaneceram em silêncio, respeitosos. Fugimos pela lateral, com os passes ao peito, e percorremos o pavilhão. O objectivo era encontrar um bom lugar. Aterrámos ao pé da regie, confiantes que os nossos passes seriam armas contra quem nos enxotasse. Ninguém o fez. Ouvimos o Carlos, a Carminho, o Camané, a Mariza, a Maria Belisarte, a Sinfonieta, o Bernardo Sassetti. Ouvimos o Homem na Cidade, o Carlos sentado com o neto Sebastião à viola. Duas horas e vinte de espectáculo. Vinte minutos antes do fim, o mais miúdo disse: Não aguento mais.
E dormiu no meu colo, indiferente às palmas, às canções.
No fim, regressámos aos bastidores e os miúdos, sinceros, disseram ao Carlos que não gostam de fado, mas que gostam dele.

sábado, 29 de novembro de 2008

modo silencioso

O casal bebeu a meia de leite e comeu a torrada. Ela leu a revista do Expresso. Ele leu o suplemento de economia. Não trocaram uma palavra.
Foi o momento alto do fim de semana prolongado.
Se tristeza...

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

então tu morrias

Então tu morrias e eu comprava um tecido vermelho pêssego para cobrir o sofá e afastar essa impressão do teu corpo. Seria uma libertação. Não penso nisso, sabes. A tua morte não me estimula a imaginação. São os espaços que me levam a estes pensamentos. Saber que enquanto estás, há coisas que não farei. Não por seres castrador, repara, apenas por ser incapaz de to propor. Prefiro o silêncio. Contigo é sempre melhor. Não penses que tenho medo de ti e da tua força, quando bates já esgotado pelo álcool, nem és muito eficaz. O meu corpo está tão habituado à força da tua mão que não a sente. É a minha maior vingança, se queres saber. O desprezo do meu corpo face ao peso da tua mão. E depois a fantasia de saber que, um dia, terei um sofá vermelho.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

o dentista e a assistente

dentista: vai sentir uma picadinha, sim?
paciente: hum...
assistente: pode bochechar
dentista: abra bem...
assistente: Dr?
dentista: aspiração...sente frio?
paciente: hum...
dentista: vamos fazer uma endo
assistente: grampo?
dentista: sim
assistente: abra bem a boca
dentista: não sente nada?
paciente: hum
dentista: preciso de ...
assistente: aqui
dentista: a que rotação está?
assistente: a 400. Quer 300?
dentista: sim e cones 40.
assistente: está bem?
paciente: (silêncio)
dentista: raio x...abra bem
paciente: haaaaaa

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Adeus



Vão matar o Batman/Bruce Wayne. O único herói passível de ser considerado herói, suficientemente atormentado para ser interessante e com uma indumentária nada gay. Não há justiça no mundo.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

para dentro

Buda está na montanha. Buda está na montanha.Buda está na montanha. Buda está na montanha.Buda está na montanha. Buda está na montanha.Buda está na montanha. Buda está na montanha.Buda está na montanha. Buda está na montanha.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Poema de António Gedeão

Rosa branca ao peito

Teu corpinho adolescente cheira a princípio do mundo.

Ainda está por soprar a brisa que há-de agitar a tua seara.

Ainda está por romper a seara que há-de rasgar o teu solo fecundo.

Ainda está por arrotear o solo que há-de sorver a água clara.

Ainda está por ascender a nuvem que há-de chover a tua chuva.

Ainda está por arder o sol que há-de evaporar a água da tua nuvem.



Mas tudo te espera desde o princípio do mundo:

a doce brisa, a verde seara, o solo fecundo.

Tudo te espera desde o princípio de tudo:

a água clara, a fofa nuvem, o sol agudo.



Tu sabes, tu sabes tudo.

Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo fecundo

que sabem tudo desde o princípio do mundo.

Tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo

que desde o princípio do mundo sabem tudo.

O teu cabelo sabe que há-de crescer

e que há-de ser louro.

As tuas lágrimas sabem que hão-de correr

nas horas de choro

Os teus peitos sabem que hão-de estremecer

no dia do riso.

O teu rosto sabe que há-de enrubescer

quando for preciso.



Quando te sentires perdida

fecha os olhos e sorri.

Não tenhas medo da Vida

que a Vida vive por si.

Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo fecundo

que sabem tudo desde o princípio do mundo.

tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo.

A tua inocência sabe tudo.

domingo, 23 de novembro de 2008

retrospectiva

Havia o sossego da casa, o sol a bater levemente na cortina, um certo sentido de paz e de silêncio bondoso para terminar a semana.
Ficámos assim duas horas, depois fomos ao lanche de aniversário do Gugas. Os domingos têm esse apetite de não se fazer, de não dizer.
Na sexta feira rumámos à Figueira da Foz para a primeira sessão pública da Academia Pedro Hispano. Vitorino e Janita cantaram e desafiaram os mais audazes a outras comidas depois das duas da manhã, num restaurante chamado Búzio que, consta, tem o melhor farnel daquelas paragens. O mar estava ali a vigiar-nos. A Inês riu-se e contou histórias. O Zé Francisco passeava a cigarrilha satisfeito. Lobo Antunes sorriu com aquela tristeza que só é dele e felicitou os músicos. O meu marido aventurou-se a um charuto.
No sábado lemos os jornais, andámos pela casa, embrulhámos prendas de natal. Na feira de arte em Lisboa encontrámos um fotógrafo amigo e um casal de excêntricos por serem artistas. Não havia lugar ao pensamento, fomos ver o 007 sem martinis batidos, sem Bond, James Bond, sem humor e sem invenções. Ao fim dos três primeiros minutos, estava pregada à cadeira e super cansada.
Agora, no fim do domingo, a máquina a lavar a roupa, o benfica a amanhar-se com o académica, o sebastião a rever o francês e o micas a tagarelar, falta apenas eliminar o que segunda feira trará sem piedade.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Guardador de jóias


Para o Elvis

Não consigo ver nada, só sinto os solavancos. Ficar com os olhos abertos faz-me muito medo, medo do escuro. Assim, tenho os olhos fechados, sentindo cada pára-arranca do carro, o meu suor na testa, a boca seca. Penso que não vou sobreviver a isto. Quando o carro parar de vez, o meu coração não irá aguentar e vai disparar, rápido, rasgando a pele do meu corpo, trespassando todos os meus órgãos, um coração aos pulos, a correr, desenfreado, sem dono. Vai ser assim: a porta da bagageira do carro abre-se e o meu corpo vai sofrer o choque de não sobreviver ao coração que se dispara como uma arma letal. Vou morrer antes que me matem. Agora, sempre que sinto o carro abrandar, penso. Sinto-me a pensar, oiço-me a pensar

É desta, eles vêm aí.

O bar tinha aquela luz de bar e a música não se identificava. Ela até disse que o lounge era como a antiga música de elevador. Eu não percebi bem o que é que isso quer dizer, mas fiquei calado, porque gostava de a ver dizer estas coisas, o cabelo nos ombros como cortinas de um palco, o azul dos olhos a brilhar debaixo do rimel preto, preto em excesso. Não havia nenhuma história ali. Eu sabia que nunca teria hipóteses de fazer nada com ela. Estava, digamos, a guardá-la. Não como guarda-costas, mas como um fiel depositário das jóias alheias, como aqueles senhores de cabelo branco nos bancos que nos levam, em secretismo, para a zona dos cofres e nos deitam um olhar cúmplice quando se retiram e dizem

Esteja à vontade.

Eu devia dinheiro ao dono da jóia. Quer dizer, eu devia dinheiro ao casino, à minha senhoria, aos meus pais, aos meus vizinhos do 3 C, à idiota da Clarinha, tão boazinha, que me sorria constantemente, como se fosse uma fotografia. Dever dinheiro é a minha especialidade. Há anos. É como fazer bolas de fumo com o cigarro. Comecei aos 13 e nunca mais consegui parar. Mesmo quando não jogo, perco dinheiro. Às vezes acho que basta respirar para dever dinheiro a alguém.
Seja como for, o chefe - o man, o tipo, o gajo, o big boss - tinha-me dito que não era preciso pagar já, bastava ir pagando, fazendo uns trabalhinhos. E foi então que comecei a fazer de motorista para levar a menina aqui e ali, um café, um cinema, um jantar, uma festa onde ela aparecia para o fazer sentir mais importante. Ela com o cabelo loiro, como seria de esperar. Ele bossal, como todos os outros do gang, umas figuras de banda desenhada, em roxo e verde, com rostos disformes, sem bondade nenhuma. A ausência do Bom nas personagens afligia a minha alma cristã, mas aguentava os trabalhos porque devia e quem deve sempre teme, não é?
Até as vozes me assustavam por falta de humanidade. Conseguia vê-los ao longe, sem piedade, a rir e a beber, às vezes olhando para mim como quem diz

Pobre desgraçado.

A opção vitimizante é preciosa. Descobri isso muito cedo, quase tão cedo quanto às argolas de fumo. Há que adoptar toda uma postura corporal que descai, que nos arrasta para os contornos menos simpáticos da depressão. Antes de falarmos já somos a expressão viva do desgosto, da incapacidade, do falhanço. Tudo isto se cultiva. Com tempo e afinco, como quem estuda um papel a cumprir, uma representação que vai durar a vida inteira. Não há esboços de risos e vitórias, momentos preciosos tipo anúncio de telemóvel onde – imagino agora – podia cair nos braços da loira e os lábios dela colarem-se nos meus

Segue o que sentes.

Seja como for, esta minha atitude de desgraçado foi o que me safou. Devo dinheiro, muito dinheiro, e podia ter morrido ali, no dia da 13ª colecta, quando os mafiosos me atiraram para o chão e o caixote do lixo rolou para cima das minhas calças deixando um rasto de tomate e esparguete, jornais e coisas amarelas por identificar. A minha total falta de vocação para o sucesso implicou um perdão implícito

Nem para matar serves.

Quando a loira me olhou e disse que ia à casa de banho, naquela noite, naquele bar, com aquela música, não suspeitei de nada, não emiti um som. Fiquei sentado a ver as luzes a mudar de azul para rosa, de amarelo para verde, os corpos a estenderem-se uns sobre os outros com o álcool a fazer de edredão à realidade. Quando dei por mim já tinham passado quatro ou cinco músicas daquelas que não começam, vão apenas mudando de repente. Olhei para os lados da casa de banho e ela nada. Eu não sou de tomar decisões, mas senti uma borboleta, vaga, pequenina, no estômago e quase que corri para a porta de vidro martelado

Estás aí?

Nada. Um silêncio no meio daquela música, daquele fumo de luzes. Entrei. No chão, perto do lavatório futurista, a minha jóia, a menina dele, do chefe, tinha as pernas abertas e um tiro na cabeça. O vestido branco estava rasgado e cheio de sangue, as tripas de fora. Fiquei a olhar para aquilo e sabem quando vimos a nossa vida desenrolar-se em frente aos nossos olhos? Pois foi mesmo assim, porque eu soube de imediato que não tinha hipótese nenhuma, que desta vez não valia a pena ter aquele ar

Pobre desgraçado

Aquele momento durou o que durou, o telemóvel dela tocou na mala de missangas cor-de-rosa e eu, estúpido, atendi. Antes de perceber exactamente o que me ia acontecer, obedeci. Fechei a porta da casa de banho e sentei-me à espera que eles chegassem. Não sei como é que tiraram o corpo dela do bar, nem reparei. Sei apenas que me ataram as mãos e os pés e me despejaram na bagageira do carro. Disseram-me

A tipa tinha um diamante no estômago, o maior diamante angolano dos últimos 20 anos. Só tinhas que olhar por ela.

Eu, sem saber, gaguejando, cumprindo o costume, dizendo o costume

Eu pago, eu prometo que pago.

Os risos deles ficaram lá fora e eu aqui na mala do carro com cheiro a gasolina. Ainda pensei que seria horrível ter de chafurdar no sangue para procurar um diamante. Mas não era nada comigo, pois não?

Quando a porta se abrir, já decidi, o meu coração vai-me matar. Vai ser lindo. Se eu soubesse que a tipa tinha um diamante na barriga, eu mesmo tinha procedido à cesariana.
Um diamante, o maior diamante do mundo. Francamente. Há coisas muito injustas.

(ilustrações de Rodrigo Prazeres Saias que tem um blogue activo muito bom)

ontem

Ontem o dia foi salvo pelo Carlos do Carmo.
Literalmente. Bem haja. Não me canso de o dizer.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

vertigo

Depois de uma hora a puxar molas e a apertar bolas na aula de pilates, almoço no Vertigo. Batata assada com salmão. A sala está vazia. Canta a Mariza e eu fico com lágrimas a rasar os olhos, a ameaçar. Contenho-me e depois penso que é só cansaço.
O cansaço é tudo.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Comi-o

Foi em simultâneo: Rodrigo apareceu no topo das escadas volantes, transportado abruptamente para o piso onde o irmão, Tomás e Sara o esperavam; o telemóvel tocou, no visor viu o nome de Lila, sentiu a garganta a secar, a secar como se fosse um deserto, o sexo murcho, a incapacidade total de reagir, mexer, pensar, confirmar ou desmentir a sua pulhice perante o mundo. Era um daqueles momentos em que um homem vê a sua morte, vê o segundo antes da morte. Sara sorriu estonteante durante um momento, depois, rápida, viu o olhar de Rodrigo, o telemóvel a piscar, aquela luz azulada, e o Tomás a perguntar:

Então maninho, estás feliz por nos ver? Feliz aniversário.

Sara, a que já viveu tudo, esmoreceu, as mãos cerradas nos bolsos da gabardine branca, uma pele a saltar junto à unha do polegar direito, um tique nervoso.
Rodrigo mudo, ali no topo das escadas rolantes, já com os pés parados no piso da cafetaria do museu, sem reparar no embaraço de quem queria abandonar as escadas

Dá-me licença?

Desculpe.

As pessoas a atropelarem-no, a passarem por cima dele, a olhar incrédulas, a pensar

Que estúpido

Por amor de Deus


E o Tomás, sem perceber, à espera do tal abraço. Sara a meter-se para dentro, sem voz, aos berros consigo

O que é que eu estou aqui a fazer?


A mão a deslocar-se da gabardine para alcançar o braço de Tomás, a pele ainda espetada, um pronúncio de sangue

Tomás, isto afinal não foi boa ideia.


O quê? Então, não é todos os dias que se fazem 40 anos? Não é Rodrigo? Viemos os dois a Paris ter contigo para que possas reflectir sobre a entrada na meia idade.

Tomás a rir, puxou o irmão, deu-lhe um abraço. Rodrigo atendeu o telemóvel e as suas primeiras palavras foram

Estou? Sim, Lila… Não. O meu irmão chegou agora. Para me fazer uma surpresa. Não, veio com uma amiga.

Sara olhava-o fixamente, como um farol avariado, a luz a penetrar apenas naquele ponto onde Rodrigo devia ter alma, onde Deus errou no projecto humano. Percebeu naquele momento que não havia nenhuma hipótese de fuga, de salvação. O mal estava feito. Era preciso viver com o mal.

Diz-lhe que jantamos todos juntos.

O quê?

Rodrigo, branco, a transpirar na testa, numa gota rebelde que descia da orelha para o pescoço, para a camisa azul oxford sem gravata, Rodrigo a ver onde a coisa podia piorar e Sara a insistir


Diz-lhe que jantamos todos, é o teu aniversário.

Tomás riu-se e disse que tinha fome, enfiou a mão no braço de Sara, virou-a em direcção à cafetaria do museu, já a bendizer as wrapp de salmão com abacate e o maravilhoso sumo de ananás com hortelã, tudo isto seguido de um maravilhoso crème brulée, bem queimado. Sara ouviu Rodrigo suspirar, gemer, continuando ao telefone, a explicar, a organizar eficazmente o seu cenário.

Um impostor. Sou um impostor.

Sara viu o menu com cuidado, as unhas impecáveis, o polegar escondido na palma da mão, dobrado para que o sangue não se confunda com dor ou castigo. Pede um chã, Lapsong Suchang, escolhe pelo nome, porque lhe soa bem, faz lembrar coisas do Oriente e ela acredita que se se rodear de calma, não enfiará o garfo de design moderno na mão do Rodrigo, na perna, no pescoço. Ele senta-se, o telemóvel na mão, o gesto do desligar quase pesaroso.

Não estás nada contente por nos ver, Rodrigo.

Não, não é isso, é só… bem a Lilla tinha planos e…

Não queremos estragar os planos, mas jantamos todos e amanhã já cá não estamos, maninho.


Tomás enche a boca com comida e sorri. Sara não aguenta e dispara

Desculpa lá, diz-me o que é que se passa. Ainda andas com a Lilla?

Não…

Não? Explica-me lá. Tu já não andas com ela, mas continuas a comê-la e portanto ela tem a ilusão de que anda contigo. É isso, não é?

Rodrigo considerou as alternativas, a possibilidade de converter a situação a favor dele e dele apenas, mas Sara não lho permitiu. Ficou a olhá-lo com a dureza da verdade e ele nem respondeu, porque já nem fazia sentido.
Uma semana antes, no aeroporto da Portela, aos beijos, com a mala a desfalecer no chão, o casaco pendurado, ainda se lembrava do corpo dela, um corpo de rebuçado.

Sara, Sara, onde andaste tu toda a minha vida?

E ela a rir, o cabelo revolto, sem maquilhagem, uma felicidade feita de sexo e cream crakers com doce de morango. Um fim de semana sem colocarem os pés na rua, a ouvirem música, a tomarem banho, a viver para dentro.

Devíamos ter feito isto antes.


Antes?

Sim, quando estavámos no liceu, antes de ires viver para Paris. Antes.

Rodrigo concordava e lambia-lhe as pontas dos dedos. Gostava dela assim. Sara, a despida. Não o assustava quando se reduzia a esse papel de menina que se submete, que enrola a ponta do lençol com os dedos, que se ri com a boca escancarada, pouco civilizada, nada educada. Sara, a descarada.
Dentro de casa, era calmo. Era fácil. Rodrigo não lhe podia dizer que perante os outros, em sociedade, não aguentava a forma desprendida como ela emitia opiniões, debatendo com igualdade masculinas as coisas da política e da economia, do mundo e da metafísica, com propriedade, sustento e teoria. Tomás ria-se, ria-se sempre, na cumplicidade, na vontade de a ouvir falar, de a ver reduzir a tremoços as questões mais relevantes do mundo.
Tomás, o irmão errado, a versão perfeita de Rodrigo. Sara não percebia nada disso, não tinha como. Tomás era como um irmão de sangue, desses com quem cortamos os dedos em miúdos, analisamos o sexo e fumamos os primeiros cigarros: um amigo científico, nada que se compare com um homem. Rodrigo tentava exercitar a memória. Quando é que a imagem de Sara disparara na sua direcção?
Era uma festa de anos qualquer. Não, era um casamento. Ele já feliz de álcool, ela muito elegante, Gerard Darel dos pés à cabeça, umas sandálias douradas com tiras na barriga da perna e um conjunto de sinais – três – a decorar-lhe a curva do joelho. Sara sentada e ele a olhar os sinais, com afinco, com deleite, amorosamente.

Não sou só para olhar.


Era a forma dela falar, aquela coisa directa, sem rodeios, aquela maneira de deixar os homens a olhar, os olhos húmidos, os seios espetados, a magreza dos braços, o pescoço, eterno. Naquela noite, depois da música, ela contou que tinha ido pôr umas maminhas. Disse-o com naturalidade, disse-o para o picar.

Queria sentir-me uma pornostar.

Ali com a vista sobre os três sinais a namorar o joelho, Rodrigo considerou a hipótese teórica de um filme pornográfico com Sara. A boca dela próxima da camera de filmar, as pernas abertas, de rabo para cima. Sem ousar contrariar a imaginação deixou-se ir. E, por fim na cama, revelou-se uma princesa. Nada semelhante a Lilla, nada semelhante a nada. Depois do sexo Sara ainda tinha um perfume estranho, um pouco azedo, que se instalava no pescoço, nas axilas, nas pontas dos dedos.

Não é perfume, é só o cheiro a sexo, ao nosso sexo.

Ao nosso sexo?

Sim, quando fomos um.

Para onde fora a rapariga da língua solta, os palavrões, os beijos no carro, a mão na braguilha, o pedido entre dentes

Agora, agora.


No fim, Sara despiu-se e ficou apenas a princesa.
Como é que se destrona uma princesa? Como é que se lida com a realeza? Os caminhos estranhos entre Lisboa e Paris passaram a ser volumes pesados de mentiras. Rodrigo mentia a Lilla, a namorada na cidade-luz, a Sara, a namorada na cidade-branca. Demasiada claridade faz mal. Confidenciou a Tomás o deserto e castigo em que se enterrara, a divisão, a impossibilidade de colocar uma ou outra fora da sua vida.

Rodrigo, as mulheres não são manipulações abstratas, são de carne e osso e têm sentimentos. Vais-te foder.

O mesmo Tomás que tinha passeado junto ao Arco do Triunfo a ouvir a pequena Lilla dissertar sobre o trabalho colossal de introduzir dados no computador para produzir jogos de lógica. Lilla com o rosto pequeno, moreno, o corpo encolhido na roupa sem graça, dois percings, 25 anos, talvez. Rodrigo ainda tentou evitar a conversa, evitar o encontro, contudo o irmão era demasiado batido nos esquemas e nas mentiras. Queria ver onde estava a divisão. Gostava de Sara, podia gostar de Lilla, mas tinha de ver.
Lilla não passou no teste, pouco importa. Rodrigo percebeu e, uma semana depois, por sms avisou o irmão que estava tudo terminado. Nessa altura, Sara já sabia tudo. Tomás era a lealdade em pessoa. Não lhe passou pela cabeça a possibilidade do silêncio.
Sara foi implacável. Dura. Não acreditava no amor, dizia com indiferença.

Podemos estar juntos e nada mais. Tu és só mais um homem.

Rodrigo sentiu-se violado na sua masculinidade, na sua pretensa sensibilidade, preferia que ela berrasse, que lhe batesse. Sara, a princesa, tinha escolhido ser Sara, a realista. Nada de fitas, nada de amuos. Rodrigo disse que não acreditava em relações à distância.

Eu não acredito em mentiras, Rodrigo.

Para redenção de todos os pecados, Rodrigo telefonava, mandava entregar flores, escrevia sms em português e em inglês. Vinha a Lisboa e aterrava na cama de Sara, uma cama de dois metros com 25 centímetros de rio Tejo, uma pequena benção.
Foi assim durante meses. Até que Tomás telefonou.

O maninho faz 40 anos para a semana, vamos a Paris fazer-lhe uma surpresa?

Sara preparou a mala com cuidado. Escolheu a lingerie, a maquilhagem, os saltos altos. Comprou-lhe uma pulseira van Dihn, discreta, elegante. Como Rodrigo. Como a imagem que tinha de Rodrigo.

E agora estavam todos à mesa de um restaurante da moda em Paris, Sara, Tomás, Rodrigo e Lilla. Todos a falarem francês. Sara fez o seu número de princesa. Só vacilou quando Rodrigo deu a mão a Lilla. Sara pediu desculpa, foi à casa de banho e mandou uma sms

De mão dada, não aguento.

No fim, Lilla pagou o jantar e levou Rodrigo para uma noite de sexo frouxo, conforme vaticinaram Sara e Tomás, concordando que ainda precisavam de mais álcool.

Estou tão sozinha, Tomás.


Deitaram-se por volta das quatro da manhã. Sara tinha uma dor de cabeça, os olhos inchados de chorar. Tomás aflito de arrependimento.

Que ideia a minha.

Por volta das sete, alguém bateu à porta do quarto de Sara. Era Rodrigo. Ao pequeno-alomoço, Tomás ficou a saber de todos os pormenores.

E tu, o que fizeste?

Comi-o e e depois cuspi-o.




segunda-feira, 17 de novembro de 2008

o pequeno drama

Os olhos abriram-se muito e Inês explicou que todos nós fazemos pequenos dramas, é apenas preciso entender que são dramas construídos por nós por necessidade dessa dimensão de perigo ou adrenalina. O drama dá-nos a hipótese de testar emoções. A conversa prosseguiu e fiquei a meditar naquilo como num mantra pequeno drama, pequeno drama, pequeno drama

domingo, 16 de novembro de 2008

ela outra vez


Dentro desta mala tenho todos os meus segredos. Consigo transformar-me de corpo e alma. Faço o meu papel. Do outro lado do espelho há uma estranha que me cumprimenta. Tenho medo dela, mas não digo a ninguém.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Ainda ela


Não se esqueçam de me gritar, de me avisar quando for a minha vez. Não adianta fazer gestos bruscos ou delicados. Sou míope. Preciso que me gritem.

Ela


Só na sombra é que encontro alguma paz. O sol persegue-me, entra-me pelo azul dos olhos, enche-me a cabeça de preguiça e as ideias não me ocorrem. Tenho suor nas costas, na curva do peito. A única coisa que quero é que me deixem em paz, que não falem comigo, que não me oiçam pensar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Congo

Demora um minuto e faz toda a diferença: a população do Congo precisa de protecção.


http://www.avaaz.org/en/european_action_on_congo/?cl=147011752&v=2419

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

play dead, roll over


Se fosse possível iria rebolar na relva e coçar as costas.
Tudo o que eu queria era ser um cão velho, cheio de manhas e conseguir rebolar com satisfação.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

30 selos nas costas

Quando entrei no consultório fiquei fascinada a ver os pequenos selos redondos cada um com o seu creme: azul, verde, transparente, vermelho, cor indefinida. São provas de contacto, disse a médica. Mandou-me tirar a camisola e a camisa e colocou os trinta selos nas minhas costas. Disse-me que o banho, até sexta, terá de ser limitado e que para pessoas mais impressionáveis que mantenham contacto com as minhas costas devo dizer que é um emplastro, nada de especial. Até sexta tudo pode acontecer.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

cisnes no Sena


Eram sete cisnes no Sena, perto da ponte que nos traz ao Louvre.
Um deles era um príncipe amaldiçoado.
Não perguntei como é que sei, mas sei.
Há coisas que se sabem com alguma facilidade.

(foto EV)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Até segunda feira

Until The End

You've got a famous last name
But you're not to blame
Baby I see you for who you are

A one time apple queen,
And a one time tramp,
And an old time movie star.

You're a shell picker,
Of the pickiest kind,
But you always find the ones to keep.

And in or out of bed,
You keep you're head wide open,
'cause ya don't only dream when you're asleep.

Like a child ... you remember,
But I forget ... all my dreams.

I used to think,
That someday I'd relax a little,
And be more like you.

Then I realized,
How silly that thought was,
Needed to stand in my own shoes.

And from over here,
I can see you cry,
Don't even try ... to pretend.

'cause he's hurt you,
So many times,
Baby don't go back again.

Like a child, you forget,
But I remember everything..and every sting.

And through all the games,
We'll both stay the same,
As we've always been,
Through the fat and thin,
Until the end,

Norah Jones, álbum Too Late

Until the end.

A minha amiga Margarida

A minha amiga Margarida mandou-me um texto chamado toc toc toc.
É sobre o futuro do planeta, sobre os sonhos por cumprir, sobre a versão realista e futurista do mundo na versão wall-e.
O filho mais novo pergunta-lhe como era a terra antes, como era a nossa vida e porque é que deixámos de ser assim, bons para nós e para o sítio onde vivemos.
Quando falámos sobre este texto pela primeira vez o texto não existia e Margarida, que tem um sorriso do tamanho do mundo, disse:

- O meu maior sonho era os meus filhos perguntarem: Mãe, o que era a guerra?

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

We did it

E a História fez-se nos estados unidos e hoje o mundo parece um pouco melhor.
O discurso de aceitação de derrota de McCain foi uma lição.
Ainda bem.
Há esperança, portanto.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Yes We Can

Acreditar é uma forma de poder. Ainda é cedo para os resultados das eleições americanas, mas vou trauteando interiormente que há esperança, que faz sentido, que Obama tem um grão de paz na sua mão que fará a diferença. Para saberem mais, para o saberem de uma forma inteligente, vão ao blogue da Patrícia Fonseca, que faz o enorme favor de ser uma das minhas melhores amigas: www.blogkiosk.blogspot.com

Façam o favor de acreditar. Não há impossíveis, apenas uma percepção limitada do que é possível (Dalai Lama dixit)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

o meu nariz caiu

Não foi de repente, foi gradual. Depois da garganta - inflamada e a puxar para a tosse - o nariz decidiu despedir-se do meu corpo. A médica da Croácia nas urgências tinha demasiado rimmel nos olhos, uma voz bondosa e uma caligrafia infantil.

- Muitos líquidos. Três dias de cama.

Fiz que sim com a cabeça, não por concordar, mas por cansaço, para não ter de dizer nada.
Odeio a falência do corpo.

sábado, 1 de novembro de 2008

o amor maior



Em plena rotunda do Baptista Russo o amor renasce e é bom, corajoso, audaz e promissor. Bem haja.