sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

a miúda


De Adriana Molder

Série: The Passenger

Título: A Miúda
Técnica: Tinta da china sobre papel esquisso
Dimensões: 220 x 200 cm
Cortesia: Vera Cortês Agência de Arte
A exposição inaugura hoje

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

sarah moon


Pouco importa o amor, o sexo ou a morte.
Apenas a beleza nos pode comover.
O resto traz sempre dor.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

o americano em lisboa

- Lisbon is like a weird new york.

A descrição da cidade é quase perfeita, pensei. Depois fiquei à espera daquele passe mágico que Lisboa consegue fazer. Dois dias foi o tempo necessário. O americano fumou o cigarro com sabor a menta e encarou a noite, o rio, as luzes da ponte. Suspirou, esboçou um semi sorriso eu pensei:

- Lisboa ganhou.

Mais uma vez.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

o médico outra vez

Desta vez havia um sol tímido pela janela e o silêncio foi mais curto. O médico disse que era um jardineiro de almas, aparava, dirigia, cortava. Que era uma pessoa tímida, mas radical.

- Só há três coisas importantes na vida: amor, sexo e morte.

É católico não praticante e tem a ideia de que a fé só pode ser interrogativa. Citou Jung para afirmar que o que faz, ser jardineiro de almas, implica necessariamente um amor pelo o outro. Ela acreditou. Havia nele ago de solitário e de amoroso, ao mesmo tempo. Depois, sem razão nenhuma, ele disse:

- Não há criação sem sofrimento.

E ela assentiu.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

a verdade


"Escrever é uma forma sofisticada de silêncio"


Alessandro Baricco, Esta História, edição Dom Quixote

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Pela mão de Aznavour


Ontem à noite, com a mão de Aznavour a mostrar-nos a história de todas as histórias de amor que escreveu, tu agarraste na minha mão e não me largaste.
Fui imensamente feliz por isso.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

a mãezinha de Norman Bates

A mãezinha de Norman Bates, lembram-se? Dizia ela:

I'm not quite myself today.

Há dias em que faço minha a frase dela porque não há outra forma de dizer as coisas que sou.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Catarina

Ela disse que se chamava Catarina.
Gostava do Peter Pan e do Capitão Gancho e da Sininho e do pó de fada.
E ainda: do barco dos piratas, da aldeia dos índios e dos meninos perdidos.

Eu perguntei: Como é que o Peter Pan insulta o Capitão Gancho?

E ela revirou os olhos, fez um esforço, pensou e pensou e nada.

Sorri e disse:

- Bacalhau seco!

Rimo-nos as duas. Foi um momento bom.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

hoje à tarde

Hoje à tarde vi um anjo sem asas. Não que as tivesse nos bolsos, como canta Jorge Palma; mas era um anjo. Tenho a certeza. Olhou-me no mais fundo mar meu e, por instantes, houve um silêncio feliz.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

o médico

O médico era um homem do mundo, culto, de bom gosto, melómano. Tudo isto se tornava evidente no primeiro contacto, a mão dele a deslocar-se na direcção do outro. Sorria ligeiramente. Um sorriso reconfortante. Tudo no médico gritava: confie em mim; deixe-me ajudá-lo. Esta sensação durou meio minuto. Ou menos. Chovia muito lá fora e Lisboa estava de um cinzento perturbador. Ela disse:

- Não chovia assim há vinte anos.

O médico replicou:

- Pelo menos... há vinte anos.

Foi a primeira consulta.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

cheia de sorte

Dizem que desapareceste há mais de três meses.
A polícia não tem pistas e abandonou a teoria de rapto.

Sinto-me tão confiante que até já vou trabalhar.
Depois de te ter morto tirei-te esta fotografia e coloquei-a, amorosamente, como fundo da minha mala preta.
Estou de luto por ti, compreendes?

Na mala enfio ainda um casaco, por causa do frio, um pequeno frasco de perfume, um baton rosa sem graça e a minha carteira.
Sinto-me uma mulher rica.
A mala preta é um reflexo do que tenho de melhor:
a tua morte.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

chuva


Hoje está a chover. É domingo. Um dia estúpido.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

voz a preto e branco

Ontem à noite em Lisboa um a fadista deslocou-se na sala escura.
Pela sala o seu corpo em trajes pretos.
Houve um momento de silêncio e a voz soltou-se.
Uma voz a preto e branco, a saber a antigo, um ligeiro arrepio, coisas inúteis que deixaram de nos ocupar para viajar dentro do fado, da voz da mulher de preto.
Por breves momentos houve uma magia com guitarras e contrabaixo.
Era de noite em Lisboa e estava-se menos só.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

epc

Limpar o telemóvel pode ser uma tarefa ingrata, cansativa, entediante. Pode ainda ser uma arma de dor inesperada e isso aconteceu hoje quando cheguei à letra E. Tenho saudades do Eduardo. Da forma como se ria, como atendia ao telefone, como caminhava inclinado para um lado, como sorria. O Eduardo faz-me falta. Faz falta. Muita falta.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

este homem


Este homem foi bebé. Sorriu e brincou. Fez birras. Cuspiu a sopa. Terá aprendido a andar de biclicleta. Confundiu o bem com o mal e depois aprendeu? Terá ainda trocado bilhetes com a menina loira da carteira da frente? Um dia beijou alguém pela primeira vez e sentiu-se feliz? Nunca saberemos. Ele talvez saiba. Talvez ainda se lembre num segundo qualquer quando se enfrenta, quando se olha ao espelho. Debaixo da sua pele estará algo mais do que tudo o resto que o mundo conhece. Ou não.

(Vladimir Putin, Platon para a Time melhor Retrato Individual World Press Photo)

sem tempo

De todas as coisas do dia a melhor foste tu.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

ontem à noite


Depois da luz apagada, ela disse:

- Não me deixes sozinha.

Ele respondeu:

- Nunca.

Houve um momento de paz que se desfez com a primeira luz do novo dia.
(imagem Homerv)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

a sopa

Lembrou-se que o marido não dispensava as cenouras.
As lágrimas cresceram nos olhos. Juntou os legumes e deixou-os cair na panela onde a água fervia. A casa estava demasiado vazia. Era grande agora que o marido morrera. Pensou que a solidão era isso: fazer uma panela de sopa só para uma pessoa.

O marido morrera há duas semanas e ela continuava a fazer a mesma quantidade de sopa. No fundo tivera uma boa vida. Foram felizes. Era pena que não tivessem tido filhos.
Nunca imaginara que pudesse ficar assim, sozinha.
O marido tinha entrado numa loja para comprar pilhas para o comando da televisão. Um homem com a cara protegida mostrara-lhe uma arma. Não sabia exactamente o que é que se passara. A mulher polícia tinha dito que tudo se resolveria, que iriam descobrir o assassino. Mencionara uma onda de assaltos e o problema da droga.

Nesse dia ficara viúva. Tinha 57 anos.

Olhou para o relógio, verificou a fervura da sopa. Ouviu a campainha da porta. Sentiu um sobressalto. Reviu o rosto do marido.
À porta estava um polícia com quem já falara. Ele olhou-a, sugou o cigarro e disse que estava tudo resolvido.

Ela sentiu o cheiro da sopa.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

orquídoido

Ela não teve de explicar o que significa "talento para amar". Houve uma espécie de silêncio quando ele leu a mensagem. Algo no seu corpo que se calou. Podia até ser o coração, mas ele não soube. A frase referia-se ao desastre da relação deles.
Sem que ela soubesse, ele imaginou uma orquídea, a mais bela de todas, uma orquídea redentora capaz de transformar o mundo dela. Um orquídea com talento para a amar.
Seria suficiente?
(imagem Homerv)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

desculpa


Desculpa. Tinha pensado em convidar-te. Quer dizer... acho que irias gostar do filme, afinal é uma história de amor e tu gostas disso, do exercício do amor. Pelo menos foi o que disseste. Não foi? Desculpa estar sempre a fazer perguntas e a pedir desculpa. É a minha maneira. Dizes que não faz mal e encolhes os ombros. Tenho a certeza de que não me ouves. O silêncio fica a meio de nós, a distância do teu corpo ao meu é a maior muralha de todas. É conveniente que o filme se passe na China. Desculpa. Não, não sou pessimista. Aprendi apenas a antever os teus humores. E não sei o que te diga. Enquanto te olho imagino o beijo que podíamos dar, os dois. Tu a beijares-me com a boca toda, eu a ser engolido. Imagino coisas destas e outras. Se soubesses, dirias que é uma coisa de homem. Terias razão. Talvez. Desculpa. Não tenho a certeza. Sei que parte do meu amor por ti é essa tua postura masculina, de quem se está nas tintas. Há momentos em que me sinto mais mulher do que tu. Com mais piedade pelas coisas do mundo. Olha, a meio do filme senti uma tristeza tão triste que quase chorei. Desculpa dizer-te assim. A culpa é tua. Toda tua. Como geralmente é. E só nessa medida é que te vejo mulher; aí e nos beijos que imagino darmos. Como no filme. Desculpa a parvoíce. (imagens do filme Sedução, Conspiração de Ang Lee)

o homem


O homem olha para a terra sem saber se deve ou não descer do seu ponto privilegiado, o alto de onde olha o mundo. Perder o seu local de observador, correr o risco de ser usurpado desse espaço que lhe parece natural, é algo que o atormenta. O mundo, lá no fundo, com os outros, pode ser perigoso. O homem pensa nestas coisas e noutras enquanto toma uma decisão. De repente, sente frio e decide avançar. Um gesto em falso, uma pedra traiçoeira, o homem cai e é engolido pelas brumas. Lá no fundo, os outros, não sabem de nada. Estar sozinho deve ser isto.
("With Caspar David Friedrich by the sea." Joao Vilhena 2007 -(Masterpiece Series). -9x15; laser print ed.3)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

carta parte II

Agora já posso escrever outra vez. Há o silêncio para isso. Queres que te conte o resto?
As dores não têm uma explicação exacta, são dores. Como é que se descreve a dor? Contínua, aguda, em pontada, hesitantes? Não te sei dizer. Dor para mim é dor. A descrição reduz-se ao seu enunciado. De sexta feira até hoje tenho dormido mal, muito mal. Sem posição, com sonhos.
Imagina que sonho frases inteiras do novo livro, do meu novo personagem, o meu Eduardo. Um absurdo total. Acordo, quero escrever e são três da manhã e não posso mexer-me. Cada vez que preciso de ir à casa de banho o meu marido levanta-se, sempre gentil, sempre tranquilo, segura-me, diz-me para ter calma, para ir devagar. Ele sente quem eu sou. É a melhor descrição que posso fazer.
Despiu-me com todo o cuidado quando viemos para casa. Senti-me uma criança. Uma velha. Foi estranho.

Agora estou melhor. Muito melhor. A dor continua e tenho dificuldade em mexer o corpo, o tal corpo. Amanhã vou ao médico tirar pontos. É na costura da cesariana. Outra abertura para tirar um extra que o corpo não queria. Nada de especial. Nada de importante. Apenas um desvio, um ajuste. Com dor. Por vezes pergunto-me se ainda serei eu. Hoje escrevo pela primeira vez. Para ti.
Um beijo

carta a um amigo do outro lado do Atlântico


Lisboa está quase adormecida, há um silêncio transformador que me permite, por fim, escrever. Na quinta feira da semana passada fiz uma intervenção cirúrgica, anestesia em forma de epidural, internamento, dores, pensos, drenos, comprimidos. Vou-te contar: na mesa do bloco operatório (nunca percebi porque se diz mesa e não cama, cama metálica, por exemplo, ou cama estreita de metal ou cama para intervenções ou cama médica) tive um ataque de riso. As lágrimas escorriam dos meus olhos. O médico contou uma anedota: uma loira está grávida e pergunta solene: será meu? Eu a rir muito e as enfermeiras a preparar coisas (não vou definir as coisas porque não posso, não sei e é um pouco assustador ainda agora). De repente, o anestesista diz: temos 18/6 de tensão. Há um rodopio à minha volta e eu ainda tenho a imagem da loira burra a filosofar sobre a maternidade do seu rebento. Pouco me importa que a minha tensão arterial esteja a subir ao evareste. Nada disso é interessante.

Outras coisas: estou nua, claro. E tenho do meu corpo a percepção da idade. As mulheres têm isso, sabes? A ideia do corpo e da idade num novelo de fios complexos que só podem ser tecidos com nostalgia. Ora o meu é como um mapa de vida: a cicatriz no joelho quando caí na ilha da madeira, aos nove anos, no dia em que me apareceu a menstruação; a nódoa negra que fiz pouco antes por ter batido na mesa da cozinha; as duas cicatrizes das cesarianas, duas linhas que simbolizam o meu toque de Deus; uma série de sinais que têm surgido do nada, como uma chuva de tinta que fica em mim e que revela o meu tempo, o tempo do meu corpo. Estava eu nesta contabilidade quando a máquina apitou e julguei que o Dr House ia entrar a coxear para me salvar com uma teoria qualquer que tem a ver com fungo no pão ou coisa que o valha (sabes a série Dr House?). Enfim, depois cai num torpor qualquer e adormeci. Lembro-me de ter um frio terrivel, um frio dentro do frio. A enfermeira resolveu um assunto, achou ela, com uma manta metálica e um tubo que foi colocado debaixo da manta. Do tubo vinha um calor constante, era um tubo de escape para cima de mim, do meu corpo, o tal corpo. O único som que havia na sala era o dos meus dentes a bater. Apesar da manta futurista e espacial, do tubo quente. Pensei se tinha dores e concluí que só frio, porque até o corpo eu não sentia. Estava belo adormecido, o meu corpo. Quando cheguei ao quarto estava vazio. A enfermeira riu-se, passou-me a mão no cabelo, perguntou se precisava de alguma coisa, ajeitou-me como uma mãe e deu-me o telemóvel para falar ao meu marido. Foi o que ela disse: para falar ao seu marido. E eu, obediente, claro, liguei, o corpo ainda por acordar. Ficou perplexo o meu marido, a meio do seu jantar. Estava a contar comigo mais tarde. Tinham-lhe dito para voltar mais tarde. Fiquei ali no escuro do quarto. Quando ele chegou, por fim, pouco tempo depois, eu continuava a tremer e comecei a chorar. Antes, porém, num sentido prático absurdo mandei uma série de mensagens escritas a dizer que estava óptima, que tudo tinha corrido bem. Não sentia nada. Quando ele chegou senti medo e chorei. Chorei durante muito tempo e adormeci a chorar, com frio e medo. Isto foi o dia da operação.
Faz hoje uma semana. Depois te conto o resto. Perdi a força para escrever.
(imagem Homerv)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

a bicicleta

Estás a ver aquela bicicleta à chuva? É o que me resta de ti.
Andas nela de manhã antes do almoço e depois à tardinha quando o sol começa a pregar partidas e a luz parece rarefeita, um acaso de cores. Dizes que vais ver o que se passa no mundo. E o mundo tem três quarteirões, uma praça, um coreto com ferrugem mas ainda assim a dar graça às casas que o espreitam e ouvem a banda no dia da vila. As festas, em Setembro, são dias felizes, cheios de pequenas azáfamas que nos dão sentido e tu sais a correr e voltas com os sacos de pão, legumes e frutas. Fazes compotas e camas. As visitas espalham-se pela casa e tu, devagarinho, como uma gata carente ronronas

Não faz mal, pois não? Não te importas, pois não?

E eu, nada. Aqui quieto fico a ver a dança das visitas, as gargalhadas, as caixas com bolinhos que são como uma despedida. Consigo ver de quem gostas mais pela quantidade de comida que ofereces. És generosa. Sofres de generosidade. Um dia disse-o e tu

Ninguém sofre de generosidade.

E eu, nada. Como sempre. Aqui quieto a ouvir o silêncio da casa quando tu sais de bicicleta.

Sabíamos os dois que seria assim. Quando eu tinha 42 anos e tu 18 havia a graça do teu rir na desfaçatez de me considerar sério e eu bebia da tua energia com cuidado, mas de uma forma ávida. Eu que nunca fui adicto a nada, viciei-me em ti. Um amor vertiginoso. Mostrei-te o mundo e andámos por aí a espalhar o teu riso. Em Paris apareceste com o cabelo cortado à rapaz e tinhas na mão um enorme lápis de carvão. Disseste

Uma flor.

E eu vi uma flor, sabes?
Quando tu ficaste na casa de banho do quarto de hotel, num banho de imersão cheio de espuma, deixei a porta aberta para que pudesses ouvir-me ao telefone com a minha mulher, longe, longe, lá nos confins do Porto. Eu a dizer que em Paris fazia frio, que ainda não lhe tinha comprado nada, que não chegava na sexta-feira. A coisa complicara-se.
Quando saíste da casa de banho, em lingerie cinza e sapatos altos de verniz vermelho, a provocar, olhaste-me com desdém

A coisa complicou-se? Pois, é verdade, eu sou uma coisa e complicada.

Levei-te à Maison Blanche. Os telhados de Paris e todas as outras maravilhas. Mantiveste o teu pé entre as minhas pernas enquanto comias. Nunca quiseste discutir a minha mulher. Eu tentei dizer-te tantas coisas e tu, distraída, a brincar com a comida, a beber champagne com ligeireza. Sempre atenta ao movimento da sala, não me deixaste dizer o essencial.

Antes de a deixar há coisas que tenho de...

E tu que sim. E isto foi logo no primeiro mês, o amor ainda era apenas sexo. Voltei ao Porto em erupção de vontades e quando entrei em casa a ternura de um sorriso velho surpreendeu-me. A minha mulher esperava-me com flores frescas nos vasos, um piano a tocar, um cheiro tentador vindo da cozinha. Dei-lhe um colar e um lenço e ela riu-se, baixinho. Hoje penso que o riso dela era como uma vitória. Porque ela sabia. Claro que sabia. Não havia como não saber.
Tu eras tão saliente. O adjectivo tinha sido proferido a meio de um jantar, casais amigos e, de súbito, o teu nome, o teu fantasma e o tal adjectivo. Não reagi bem. E foi nessa reacção viril e de defesa que começou a batalha pela liberdade. Ela a dizer que eu não precisava de te defender. Eu a dizer que sim. Ela a querer saber porquê e eu a estoirar, como um vulcão acidentado, eu a dizer

Porque a amo.

Desde quando?

Desde que aquele imbecil lhe chamou saliente. Dantes era só sexo, agora é amor. A partir de agora.

E a partir dali, daquele agora, começou a nossa vida. Eu cheguei ao teu T1 com uma mala de mão e uma garrafa de whisky. Não havia flores frescas, nem piano, nem comida no frigorífico. Estavas tu, pronta para me receber, sem nenhuma pergunta. Tu a estender-me um copo de vidro baixo e a saber

Queres com gelo?

Podia ter sido assim só, mas a vida atropelou-nos e durou dois dias. Voltei para casa. A minha mulher, em desespero, atentou contra a sua existência sem a elegância das boas famílias.
Nunca mais te vi. Um telefonema, uma mensagem curta. Nada de especial. Anos de vazio. Um dia, pelo natal, perguntaste ao telefone

Estamos bem, tu e eu? Quer dizer, ainda gostas de mim?

Se tu soubesses...

Tinham passado quase 20 anos. Na primavera a minha mulher deixou-me e fugi para a casa perto da Póvoa de Varzim a ver se o vento poveiro me levava. No dia seguinte lá estavas tu, duas malas e um sorriso imenso. Já não tinhas 18 anos. Eu já não tinha 42. Desta vez fui eu que perguntei

Queres com gelo?

Desistimos de tudo ou quase tudo para ficar aqui, na vila, perto do mar. Cheios de livros e coisas. Eu quieto, tu a ver o mundo de bicicleta.
Há uma semana encontrei-te estendida no chão da cozinha. A tua morte surpreendeu-me. Pareceu-me uma partida de mau gosto. Tu dirias

A coisa complicou-se.

Agora resta-me a visão da tua bicicleta.

o início


(ver mais em www.claudiogarrudo.com)