Ela sou eu. Sou eu que digo.
Este não é o meu corpo. A verdade é essa. Eu sei que tudo começou em Amsterdão. Eu sei que foi face ao Rembrandt, com o rosto da criança a perder-se na sombra. Eu sei que tu também sabes. A sala do museu era quadrada, perfeita. É absurdo dizer-se de um quadrado que é perfeito. Foi o que tu disseste: o equilíbrio geométrico traduz a materialização da própria ideia de perfeição. De verdade. Porque Deus é geómetra. Eu sei. Mas foi face ao Rembrandt, fixando o olhar da criança a perder-se na sombra, que eu te perguntei se me querias fotografar como sou, ou se me querias fotografar para consumar uma ideia de mim de que eu poderia ser, não o corpo, mas o instrumento. Pensas demais, disseste. Quero o teu corpo, disseste. Quero a imagem do teu corpo, ouvi-te dizer. Mas o meu corpo não é a imagem do meu corpo. Quero os dois. Queres os dois. Não te dou tanto. Se me amares mais do que eu te amo, dás-me tudo isso e será sempre pouco. Repara no Rembrandt. Que importância tem a criança se está a desvanecer-se na penumbra? Se isto fosse um filme, na imagem seguinte já não estaria lá. Não, meu amor. Estaria a verdade da sua ausência. A ausência não pode estar relacionada com a verdade. Pode sim, a ausência é a própria encarnação de Deus e Deus é sempre verdade, toda a verdade. Este não é o meu corpo. Esta pose, as pernas abertas como um gafanhoto, a luz crua sobre as nádegas, o traço de sombra que começa milímetros antes da boca do meu sexo, o braço esquerdo paralelo ao tronco, a mão virada para cima, a outra mão já fora do enquadramento, o olho direito a brilhar sobre os cabelos desarranjados, nada disso sou eu, nada pode ser atribuído à decisão de Deus nos massacrar com a sua ausência. O olho direito e o sexo na penumbra podem ser dois vértices de um losango que se desenha já fora da imagem, afastando de nós o peso e a culpa da perfeição. Mesmo se é verdade que todos os quadrados são losangos. Acontece que nem todos os losangos são quadrados, meu anjo. Apesar de tudo, Deus aceita dar-nos algumas figuras de apaziguamento. Pensa nisso.