segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 5


(Voz normal)


Coisas assim. O mais engraçado é que socialmente rimos destes programas, destes conceitos cheios de bom senso e sabedoria básica. Rimos por desprezo intelectual, claro, rimos porque a infelicidade tem mais glamour, uma maior potencialidade para nos transformar em alguém interessante. Isso aprendi com a minha mãe e com todas as outras mulheres da minha vida, a minha irmã, a minha melhor amiga, a minha colega na escola, aquela que me bajulava na faculdade para eu fazer os trabalhos de grupo sem ter de se maçar. Sofrimento e dor são sinónimos de uma condição intelectual que nos almejara um outro qualquer caminho de sucesso que ultrapassara as conquistas das nossas mães e avós. Grande frase. Uma merda. Digo eu. Prefiro todas as séries americanas de violência, onde o bem e o mal não conhece fronteira precisa. Séries sobre polícias, sobre psicólogos que fazem perfis de assassinos. Fico a olhar para isto e a pensar: são tão generosos, dão tantas ideias a quem precisa delas, ideias de violência e crueldade infinita. Ideias exequíveis. Tremendamente fáceis de imitar. E eu começo a imaginar os potenciais assassinos que cada episódio gera; homens e mulheres com um bloco na mão a tomar notas. Sentados em frente à televisão, escrevinhando: a melhor forma de escapar; de matar a mãe, de dar o golpe do baú, de morrer. Uma merda.

(Suspira)


E eu aqui, pacatamente, na cozinha a ver se não me engano na quantidade de farinha para estes bolinhos. A fazer os mesmos gestos de sempre. Gestos femininos. Cozinhar e lamuriar. Duas combinações possíveis, que encaixam na perfeição, que contribuem enormemente para o avançar do Planeta, cansado na sua rotação ligeira. É preciso um salto de fé para ultrapassar as convenções. Eu sou prova disso. Não fiz o percurso esperado e tive um sucesso precoce com o qual, reconheço agora, lidei mal por ingenuidade. Achei que era a minha hora. Acabar o curso, estagiar numa grande cadeia de hotéis, chegar ao topo antes dos 30 anos, ter um grande ordenado.

(Elevando a voz)


Mundo: eis as minhas conquistas.

(Voz normal)


Não consegui, porém, abandonar a ideia da tristeza ou do sofrimento, da dificuldade de estar e de viver. Antes de morrer, morri como tantas outras mulheres da minha geração e de todas as gerações anteriores. Como se a infelicidade fosse uma dádiva ancestral. Um estigma. Não combati esse sentimento com a mesma convicção com que me esfolei para fazer uma carreira digna de qualquer outro. E não, não

(Abanando a cabeça)


... não vou fazer desta lamúria um discurso sobre homens e mulheres, porque francamente, estou-me na tintas para a distinção. Surpreendidos? Não faz o meu género. Não vale a pena. Os homens podem ter força, poder ou ser simplesmente patéticos. O meu primeiro namorado era a minha alma gémea. Cantava ópera. Tinha uma voz castrati. Linda. De mulher. O que ele gostava de se imaginar num palco a cantar uma ária da Norma. Casta diva.

(Muda de voz)


Consegues ouvir, querida? Consegues? Não é uma maravilha?