quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 7

(Os bolos estão no forno, prova a sopa e desliga-a)

O que desprezei foi a falta de consideração pelo morto e ainda o medo. Detestei o medo dele. Lembro-me de pensar que não seria possível viver com ele o resto da vida. Porque o resto da vida, num casamento, implica uma série de coisas. Posso fazer uma lista. Devia ter feito uma lista antes de casar a segunda vez. Ora, uma receita para um casamento, bom ou nem por isso.

(Parece meditar)


... Ingredientes: harmonia, capacidade de diálogo, de partilha, confiança, sentido de humor, dedicação, aceitação dos defeitos do outro, não como um desafio que se pretende quebrar, mas como parte integrante do que se ama. Estou, claramente, a fazer filosofia básica. Um casamento é ver alguém a desfazer-se em merda, cheirar mal e não querer sair dali a correr. Não me ocorre nada melhor.

(Faz uma pausa)


Acho que vou fazer um caril de grão...

(Começa a mexer nos armários outra vez. Há um sinal sonoro de entrada de mensagem que vem do portátil. Surpreende-se)

Quem me quer? Hum, pois. Está tudo a postos, tudo perfeito, nada de preocupações.

(Escreve a mensagem, quando termina vai abrir um frasco de grão e um frasco de leite de coco e continua a reunir os ingredientes)


Onde é que eu ia? Sim, casar ingredientes é tão complexo quanto casar pessoas. No outro dia fiz uma salada de queijo cabra com morangos e vinagre balsâmico. Parece uma mistura estranha. Funciona. De uma forma quase próxima do perfeito. O meu segundo casamento foi assim. Eu saltei do penhasco. Abandonei o meu emprego, a minha carreira. Queria ter um filho. Queria ser a mulher de alguém e sentir nesse estatuto a dimensão extraordinário de me saber melhor pessoa por isso. Era amor. Falávamos horas sem fim. De tudo. Não havia segredos. Contou-me tudo. Ficou transparente.

(Abre a torneira)


Como água. Éramos um do outro e contra o mundo e nessa união escondemo-nos da maldade. Por uns tempos. Não havia necessidade de ir à rua. Como agora. Ser um do outro sem condições é inebriante. O outro pode se tornar um vício. A dependência instala-se devagar, traiçoeira, não damos por ela, é fingida e cruel. Ataca-nos num momento de ausência. Ele que não está o mundo deixa de fazer sentido. De uma forma desproporcionada. Tudo se desfaz. Percorremos os mesmos passos à procura, como quem espera e procura a própria sombra. O mundo parece ter encolhido. Não existe China, Amazónia, Equador, gelo a derreter na Pólo Norte. O mundo é ele e, por isso, podemos abdicar do sol e do rio lá fora, de rir e estar. Como agora.