quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos


Poderosa


Ela
(Uma mulher na cozinha, uma cozinha sofisticada. A televisão está ligada, a janela está aberta. Há luz do dia. Será de tarde. Ouve-se o barulho de uma faca a cortar legumes)

É reconfortante. Fazer sopa. São um conjunto de passos mecânicos. As batatas. As cenouras. As cebolas. A abóbora. No fim, se for caso disso, os espinafres. Uma lata de grão de origem francesa. Uma mão cheio de massa em forma de cotovelo. Uma pitada de sal. Ponho noz moscada. Não porque goste de noz moscada, atenção; mas apenas porque a minha mãe utiliza noz moscada em tudo o que faz e eu não a posso desiludir, pois não? Pois não.

(Faz uma pausa)

Está calor. Calor em demasia para fazer sopa. Mesmo uma sopa simples, sem rodelas de chouriço, arroz, massa, couve lombarda. É reconfortante fazer listas de alimentos. Listas de compras. Listas de actividades para a semana. Listas de prendas de natal. Listas. Podia fazer uma lista de emoções. Podia. Podia. Mas não vamos por aí. Isto vai ferver. Vamos fazer... bolos ou bolachinhas de azeite. Ainda é cedo.

(Começa à procura de uma receita nos livros. Para chegar à prateleira utiliza um banco e, já em cima do banco, olha lá para fora através da janela)


Não tenho talento para isto. Para apreciar a paisagem lá fora, para me reconfortar com as coisas do mundo. Será bom viver lá fora? Há quanto tempo é que não me atrevo a descer à rua? A sentir o sol? As pessoas a passarem por mim? Tenho algum receio das pessoas. Desde pequena. Em casa da minha avó havia umas arcas de madeira onde me enfiava para fugir aos outros. E sempre houve esta distinção: eu e os outros. Nunca fui uma doadora de sangue. Nunca fiz nada pelos outros. Aprendi isso com a minha mãe, claro. A minha mãe é a grande...

(Procura a palavra e, por fim, suspira)


... fábrica... não, a grande porca leiteira, fornecedora de leite a todos, aos inválidos, infelizes, ausentes, estrangeiros, deficientes emocionais. Qualquer ser humano exterior ao núcleo da minha mãe é contemplado pela sua atenção desmesurada, pela sua bondade, ela que é pródiga em bons conselhos, ideias e esquemas de sobrevivência. Ela que se droga com anti-depressivas desde que me lembro – pequenas caixinhas de cartão com letras a vermelho na mesa de cabeceira.

(Muda de tom de voz e teatral diz em tom de ameaçador)


Não mexas aí, nunca mexas nos meus comprimidos.