(Fecha os olhos como se estivesse a ouvi-lo)
Era quase perfeito. Ainda não tínhamos 20 anos. Eu sentia que o meu corpo era uma experiência científica e queria ser uma cobaia. Ele estava mais interessado em perceber a diferença de colloratura da Maria Callas. Foi aqui que começou a minha suspeita: sou ou não sou uma infodível? Gostava tanto dele que quando arranjei um outro namorado fui a correr comprar o mesmo perfume. Quando tinha saudades do primeiro obrigava o segundo a ouvir óperas infindáveis e cheirava-o. O segundo, chamemos-lhe assim, citava Woody Allen: “Tanto Wagner dá-me vontade de invadir a Polónia”. Era engraçado, o segundo. Não gostava muito de sexo, ou melhor, gostava quando gostava, na hora dele, no momento dele. Era uma coisa rápida e repetia-me ao ouvido:
(Murmura)
...não te mexas, não te mexas. Eu ficava ali como... como um frango no churrasco a pensar na minha lastimosa infodibilidade. Mas este era bondoso. Perguntava-me todos os dias como é que eu estava e eu todos os dias respondia, invariavelmente: cansada. Era mais forte do que eu, mais forte do que outro cliché qualquer.
(Fingindo responder)
Bem, querido, muito bem, estou maravilhosa, estou tão feliz. Fazes-me tão feliz é só pena que me doam as costas.
(Voz normal)
Todas as minhas conquistas profissionais levavam a este cansaço e eu era um bombeiro voluntário para as causas maiores e menores, sempre disponível e sabedora. As coisas que eu sei? Não se imagina as coisas que eu sei. Ou que posso fazer. Ou que fiz. Molhos, misturas, combinações, sobreposições, impregnados, espumas e névoas. Uma verdadeira feiticeira.
(Faz uma pausa)
Casei aos 30. Com o terceiro. Não fomos felizes porque não estava escrito, acreditando na minha mãe e na mãe dele: Deus as guarde por concordarem nisto porque em tudo o mais discordavam sem piedade. O meu casamento durou dois anos. Foi rápido. Foi mesmo indolor. A recordação mais viva que tenho do casamento é uma imagem do meu marido a chorar o pai morto.
(Começa a colocar a massa nas formas e abre o forno)
Parecia um miúdo. Não parava de dizer:
(Muda de voz)
Tenho tanto medo de morrer, tenho tanto medo de morrer.
(Voz normal)
E eu? Não lhe podia dizer que não ia morrer, por isso fiquei ali a ver. A minha mão no ombro dele. Parecia uma cena de filme. As pessoas chegavam à capela e apresentavam-me as condolências de forma solene e ignoravam o filho do morto porque ele se prestava a isso. Só dizia:
(Muda de voz)
Tenho tanto medo de morrer, tenho tanto medo de morrer.
(Voz normal)
Fazia pena. Por um lado. Detestei a sua fraqueza e desprezei-o. Por outro... Há sempre dois lados, não é? Mesmo na cozinha: o lado de fora do rosbife, o seu interior; a crosta de um bolo; o seu recheio. Enfim...
Figueira da Foz, 5 de Março
Há 16 anos