(Cheira o caril a cozinhar)
Nessa noite, sozinha na nossa cama, sonhei que o cozinhava. Ele que adora a minha comida. Era capaz de esperar quatro horas por um borrego assado, um couscous mais sofisticado, uma tagine de mel e frango, uma tarde de faisão com cebolinhas. Ficava aqui, aqui mesmo, a ver os meus gestos, a fazer perguntas infantis e a falar ao telemóvel. Em vez de me sentir vigiada e escrava do seu apetite, eu dançava pela cozinha, feliz, feliz.
(Rodopia)
Nunca fui tão feliz na cozinha. Com ele aqui a ver-me no meu melhor. Um homem agarra-se pelo estômago, dizem. Que ironia. Casou ele com uma chef e mesmo assim não lhe bastou. Levou o teu saco de ginástica para outro lado qualquer. Espero que se alimente de comida de plástico. Espero que ninguém lhe faça sopa de tomate com farripas de ovo cozido ou com natas e alecrim. Sobretudo espero que tenha dores de estômago. Regulares. Foi uma praga que lhe roguei no dia em que sonhei que o cozinhava. Cozinhei-o como naquele filme do Peter Greenway sobre o ladrão, a amante e o amante dela. Limitei-me a ser mais criativa e a multiplicá-lo por diferentes pratos. Não o desperdicei. Isso nunca. Primeiro parti-o aos bocados, sem poesia, sem medo. Com um destes cutelos.
(Mostra a faca)
Estava na minha cozinha, lá no hotel, uma cozinha enorme, cromada, imaculada. Parece um laboratório a minha cozinha. É o que dizem. E ele? ele pingava sangue por todos os poros deitado aos pedaços na minha mesa. Tinha as facas alinhadas, como um cirurgião, e tachos e panelas à minha volta. Atirei as suas mãos para um tacho para fazer com grão, já sabem como gosto de grão. Assei as suas pernas e fiz os seus miolos num wok com um pouco de azeite com estragão.
(Vai à janela e diz lá para fora)
Lamento se vos desgosto com esta descrição. Era o meu marido e eu comi-o. Estava bom. Um pouco enjoativo para o final. Acordei suada.
(Encarando a plateia)
Sabem quando o suor fica a empastar o pijama? Como se tivéssemos medo da concretização exacta do que sonhámos? Porque eu, eu, seria bem capaz de cozinhar qualquer coisa. Foi essa a distinção verbal que tive no fim do meu estágio. Ser capaz de cozinhar qualquer coisa. E o sonho era real. Fiquei em pânico e corri para o telefone para ouvir a voz dele. Eram cinco e pouco da manhã e ele respondeste:
(Muda de voz)
O que é que tu queres? E no seu tom de voz, a segunda pessoa do singular – o tu que era eu – era uma sentença relativa à minha imbecilidade, à minha estupidez. Ele estava vivo e farto de mim.
(Senta-se de novo)
Durante dois meses não nos falámos. Voltei a trabalhar todos os dias. Desenvolvi uma técnica nova para fazer espumas, para impregnar sabores em massa folhada. A minha tristeza concentrava-se na beleza da cozinha: tinha ali todo o seu esplendor. Até ao dia em que me encontraram no frigorífico das carnes a chorar. Um clássico, não acham? Meti baixa. Obrigaram-me a meter baixa. Dizem que os chefes têm um ego e vaidade equivalente ao seu talento. O meu ego esmoreceu, acredito que o meu talento também. Nunca foi isso o mais importante. Podia fazer uma lista de coisas importantes e nenhuma passa pela comida. Cozinhar é não estar sozinho. E na cozinha eu sou a estrela. Cozinho qualquer coisa, já vos disse? Não preciso de Deus nem dos homens para cozinhar. É um acto solitário. Como um escritor, um poeta, um músico. Amanhã regresso ao trabalho. Ele começou a mandar mensagens há uma semana. Mensagens cordiais, mas significativas, mensagens que me prendem como a carne no cutelo. Palavras que soam a coisas que quero ouvir, mesmo que sejam profissionais
(Muda ligeiramente o tom de voz)
Vou dar um jantar para dez pessoas, adorava que fosses tu a chef. Pode ser? Faz um orçamento. Um beijo.
(Muda para a sua voz normal)
E depois um Z para assinar, a sua inicial. Começou assim a troca, o diálogo por escrito. Mandei várias sugestões de menus, preços, ideias inovadoras. Ele respondeu sempre. Bem disposto. Como se a palavra escrito tivesse essa magia do som e eu percebesse pelo tom que já não está farto de mim. Amanhã começo a trabalhar. Depois de amanhã é o jantar dele, na casa dele, o jantar que eu vou cozinhar. Vamos estar frente a frente. Finalmente conseguirei ver todas as partes que cozinhei em sonhos e talvez falar-lhe desse sonho e da maldição de o ter em mim, como um invólucro, uma pele, uma geleia. E ele? Como é que acham que estará? À espera de mim, a sua mulher? À espera de mim, a chef? Seja como for, levo-lhe os papéis do divórcio, porque o amor quando azeda e passa de prazo pode contaminar tudo e eu, nesta minha cozinha, completamente sozinha, posso-vos dizer que não quero azedar, quero manter-me no lado dos frescos. Desculpem a piroseira. A metáfora da merda é melhor, mas não se aplica. Não se pode aplicar. Porque eu posso cozinhar qualquer coisa, não é? E isso inclui a minha vida. Acho eu.
(Sorri)
Podia fazer agora um...
(Abre o frigorífico)
Sim, carpaccio de abacaxi com hortelã fresca. Simples. Mas eficaz. Ajuda a digestão. Já vos disse que apareci em todas as revistas gourmet que existem na Europa? Todas sem excepção. Não é um grande feito para uma mulher, as feministas que me perdoem, é um feito para qualquer pessoa, independentemente do sexo. O mundo seria mais simples sem sexo, sem sexos. Isso, sim, seria um acontecimento, não acham? Vou abrir uma garrafa de vinho.
(Fá-lo com todos os gestos de um profissional)
Para comemorar o fim do dia.
(Olha para a janela, está escuro lá fora)
À minha. E à vossa.
Figueira da Foz, 5 de Março
Há 15 anos