domingo, 31 de agosto de 2008

dentista ao domingo

E, de repente, a cara inchada. A latejar. Um dente ou dois? Não há justiça no mundo.

sábado, 30 de agosto de 2008

O livro


Do lado de lá da máquina profissional que corre no carril está o meu marido, o realizador. Eu tenho de ser a autora por momentos. Digo uns disparates, tiro os sapatos e tento manter-me quieta, apesar das dores nas costas. Leio partes do livro novo. Volto a ler. E mais uma vez. Escolho excertos ao acaso. O livro tem demasiados diálogos. Os diálogos são uma forma poderosa de caracterizar os personagens. Este livro chama-se No Silêncio de Deus e estará lá fora a partir de 15 de Setembro. Não sei contar a história. É sobre a urgência de ensinar a bondade. Sobre um escritor, Manuel Guerra, que se torna melhor. Sobre a generosidade de uma prostituta. Sobre uma jornalista que não sabe onde se procurar. É um livro sobre tudo, com inúmeras histórias lá dentro, como é a vida das pessoas.
Durante um ano vivi com o Manuel Guerra na minha cabeça. Sonhava com o livro. Cada vez que me sentava para escrever ficava à espera para ver se conseguia lá chegar. O "lá" é um local indefinido, reparem. Agora o livro está aí. Vamos ver o que acontece.
Talvez alguém se comova e termine de ler com uma ideia melhor sobre a vida. Era bom.

(A foto da capa é de Claúdio de Garrudo. Podem ver mais em www.claudiogarrudo.com)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Não coro.


O homem tem umas mãos pequenas. Tem medo de envelhecer. De perder a sua oportunidade. Como o personagem de Henry James no livro a Fera na Selva, um dos meus predilectos. O homem não esconde esta realidade. Não precisa. Sabe o seu lugar no mundo. Desconhece apenas a forma de lá chegar, àquele futuro que se adivinha seu. Só seu. Está para lá de qualquer ajuda. Como Cristo numa ilustração de banksy. Corre o risco de ser preso se persistir nas suas ideias.

Da Maria Manuel para todos nós

Forever

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever;
I was wrong.


Wystan Hugh Auden

a gata borralheira

Ontem à noite, depois de um jantar regado a gargalhadas, depois de um passeio junto ao rio, ficámos na cama a ler Sophia.

Era a história da Cinderela, a Lúcia do vestido lilás e do sapato largo e roto e o preço do mundo. Perto do fim fiquei com a voz cheia de outras coisas e o miúdo de olhos húmidos.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

para a Inês Pedrosa

Fúria

Há aquele momento estranho que antecede a chegada. Há um barulho nas escadas, a porta do elevador, os passos na laje. Um aperto, uma quase dor. Prevendo o pior, ainda na esperança do melhor, ela deixa-se estar de costas para a porta, na cozinha, a barriga húmida da água que escoa do lavatório. Depois há duas hipóteses: ou ele se chega, bem disposto, a mão na porta do frigorífico, e uma frase qualquer, desgarrada, como se estivessem a falar há muito; ou a mão na porta do frigorífico e o silêncio a romper o gelo no copo alto. Um aperto, uma quase dor.
São segundos que definem a noite. Manchas de peso que alastram pela casa, propagando a aflição no peito, o bater do coração descompassado, deslocado, a meio do pescoço, prestes a deixar o corpo. Se o coração não estivesse preso, embrulhado nas cordas e no tubo de dez centímetros que é a traqueia, talvez conseguisse gritar. Um grito por ela, de terror por aguentar, de aviso, de guerra. Mas ela está assim, interdita, as mãos na água, as pulsações a contabilizar o medo e o medo a dominar tudo.
Julga-se protegida por não terem tido filhos. Seria pior. Tenta acreditar nisso. Muitas vezes acredita. Defende-se sem habilidade quando lhe perguntam porque é não tiveram, porque é que não cumpriu o seu papel, a coisa grandiosa da maternidade que confere sentido de vida mesmo ao que não terá nunca sentido. Para a esquerda? Para a direita? Como definir um sentido? As pessoas encaram-na com uma certa pena. Como se não fosse mulher o suficiente, como se dependesse dela. Nessas ocasiões sorri e olha para longe e espera que passe, sabendo de antemão que falta uma resposta e que do seu silêncio nascerá apenas desconforto, constrangimento e, por fim, outra vez pena.
Ele não julga nada porque a vida não lhe ensinou isso. Ensinou-lhe as coisas básicas da sobrevivência: o trabalho é para trabalhar. Um homem não deixa e não faz um rol de coisas que não importa agora nomear. Um homem fuma e bebe, não chora nem pede. Paga as contas e verifica o dinheiro. Fecha a porta da casa de banho. Sempre. Compra roupa uma vez por ano. Usa o mesmo tipo de sapatos. Arranja as coisas em casa. Procura não pensar. Nada de sonhos, nada de fantasias.

Larga essas revistas, que porra!

Ela sonha com as extensões de cabelo da apresentadora do concurso da televisão; sente as dores da outra que foi trocada pelo marido seis meses depois de um casamento majestoso numa quinta qualquer; comove-se com o nascimento da modelo; tenta imitar a actriz da telenovela da noite. Tudo isto antes de fazer o jantar, as revistas escondidas do olhar dele. A mesa está posta e ele arrasta-se com o copo na mão até ao sofá gasto. Ela atreve-se

Um dia vou mudar de sofá.

Nem penses, este já tem o buraco do meu cu.

São coisas assim. Coisas que a limitam, aprisionam, desfiguram. Ele torna-a um conjunto de coisas sem nome. Ela sabe e sabe melhor quando vê as horas a serem comidas pelas telenovelas e o ouve roncar de álcool no sofá. A cozinha está arrumada, não lhe resta mais nada, a luz da televisão a engolir-lhe a tristeza e ela a perder a noção de si, pronta para ser uma princesa, alguém outro que ninguém conhece. Uma mulher, por fim.
Nessa sexta-feira fazia calor. Era tarde. Não lhe apetecia carregá-lo para a cama, ouvi-lo na sua voz empastada a dizer asneiras, a chamar-lhe nomes, a agressividade nos olhos, os gestos de guerra, a guerra dos dois. Quando começou? Já nem se lembra. Um dia, a mão no frigorífico, o gelo e o copo, sempre o mesmo copo. Começou assim e não importa se foi ontem ou há dez anos porque nada mais mudou. Há uma sucessão de desenganos e pequenas tristezas que convergem lentamente para um final que ela entende como um castigo: a mão no cotovelo dele a endireitar o corpo, rumo ao quarto, a mão dele na blusa dela, os dedos grossos

Nunca foste boa. Podias ser boa.

O corpo dele, por fim, na colcha de salmão brilhante e os sapatos a não querer sair, as calças a prender, a força de o levantar um pouco mais, ele a gritar

Deixa-me estar, porra.

Ela, paciente, silenciosa, a trabalhar com as mãos, os botões da camisa, o fecho do casaco de malha. As coisas no corpo dele. Podia despi-lo de tudo o resto. Não é capaz sequer de pensar nisso. Despi-lo da pequenez, da falta de mundo, da bebida, da vida. Podia até matá-lo, como viu numa série policial. Podia isso tudo e naquela sexta-feira imaginou que sim porque na televisão uma senhora pequenina, com um xaile pelos ombros, disparou olhando-a nos olhos, só a ela.
Na imensidão da noite, dentro daquela luz branco azulada do ecrã, a escritora virou-se para ela e disse

As mulheres pequenas inspiram um sentimento de vaga hostilidade, como se pertencessem a uma raça diferente. (*)


E naquele momento, como uma vocação, encarou o marido no sofá, o copo em cima da mesa de acrílico, junto ao cinzeiro imundo, a paisagem da sala por inteiro, como uma novidade, e considerou que era verdade, a escritora tinha razão. Ela, como outras, era de uma raça diferente. E, sem fúria, já calma nos seus ímpetos de fuga, optou por deixar o marido no sofá de cornucópias. Fez a cama de lavado, uns lençóis brancos de algodão puro, suaves e menineiros, e deitou-se nua no calor da noite. Repetiu alto a frase de Agustina Bessa-Luís sobre as mulheres pequenas e a diferença.
Sentiu-se bem.
Pela primeira vez, depois de muito tempo, de tanto tempo, sentiu-se bem.



Agustina Bessa-Luís, As Fúrias, página 47.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

o regresso

Saltou do comboio com a mochila às costas, preto de sujo, o cabelo rapado, a voz rouca.
Era o meu filho e, ao mesmo tempo, não era: apenas um rapaz, um princípio de homem, alguém com ideias concretas sobre algumas coisas, nada concretas sobre outras.
Ficámos numa abraço curto a matar saudades de outros tempos, ele quase da minha altura, eu a minguar por dentro. Ter um filho é ter o coração fora do corpo.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Histórias de Nova Iorque 2

Crepúsculo em New York

Com um gesto fulgurante o Arcanjo Gabriel
Abre de par em par o pórtico do poente
Sobre New York. A gigantesca espada de ouro
A faiscar simetria, ei-lo que monta guarda
A Heavens, Incorporations. Do crepúsculo
Baixam serenamente as pontes levadiças
De U.S.A. Sun até a ilha de Manhattan.
Agora é tudo anúncio, irradiação, promessa
Da Divina Presença. No imo da matéria
Os átomos aquietam-se e cria-se o vazio
Em cada coração de bicho, coisa e gente.

E o silêncio se deixa assim, profundamente...

Mas súbito sobe do abismo um som crestado
De saxofone, e logo a atroz polifonia
De cordas e metais, síncopas, arreganhos
De jazz negro, vindos de Fifty Second Street.
New York acorda para a noite. Oito milhões
De solitários se dissolvem pelas ruas
Sem manhã. New York entrega-se.

Do páramo
Balizas celestiais põem-se a brotar, vibrantes
À frente da parada, enquanto anjos em nylon
As asas de alumínio, as coxas palpitantes
Fluem langues da Grande Porta diamantina.

Cai o câmbio da tarde. O Sublime Arquiteto
Satisfeito, do céu admira sua obra.
A maquete genial reflete em cada vidro
O olho meigo de Deus a dardejar ternuras.
Como é bela New York! Aço e concreto armado
A erguer sempre mais alto eternas estruturas!
Deus sorri complacente. New York é muito bela!
Apesar do East Side, e da mancha amarela
De China Town, e da mancha escura do Harlem
New York é muito bela!

As primeiras estrelas
Afinam na amplidão cantilenas singelas...
Mas Deus, que mudou muito, desde que enriqueceu
Liga a chave que acende a Broadway e apaga o céu
Pois às constelações que no espaço esparziu
Prefere hoje os ersätze sobre La Guardia Field.


Vinicious de Moraes, poema gentilmente enviado pelo meu querido editor brasileiro Eduardo Coelho (apenas um dos melhores editores do planeta Terra)

Histórias de Nova Iorque

A banca da fruta e dos legumes apresentava-se gloriosa, uma palete de cores quase irresistível. Não havia cheiro, apenas aquele odor da gasolina e do carrinho dos pretzel e hot dogs mais à frente, junto à passadeira. A senhora tentou tirar um limão com cuidado e a banca dos limões desfez-se com rapidez. Os limões rolavam pela calçada, limões perfeitos. Um casal com um miúdo parou para ajudar na colecta dos limões. As mãos pequenas do miúdo tentavam encaixar os limões com cuidado mas, mesmo assim, alguns teimavam em cair. A senhora, atrapalhadada, agradecia. O miúdo ria-se e o casal olhou-se com ternura, ao nível do chão, com mais limões na mão.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Para EPC, um ano depois


Eduardo,

Escrevo-te agora porque estive o dia inteiro cheia de merda às costas. Desculpa o atraso. Mandei um sms à Maria Manuel e disse-lhe o quanto gosto dela, do seu corpo franzino, da forma como sorri quando ouve os filhos falar. Gosto dela apesar de ti, compreendes? Como tu nos morreste há um ano vou acumulando coisas para te contar. Pequenas histórias e fofocas que sei que gostavas; histórias sobre nós e os nossos. Aquele que deixou a outra; o outro que escreveu um livro que é uma desgraça, mas coitado, não se pode dizer; a artista que anda pelas ruas cada vez mais perdida; o artigo de jornal enfadonho daquele mais além...
Deves estar a sorrir agora. Adivinho-te daqui: tu a desceres uma rua do céu, com o jornal debaixo do braço, a pensar sabe-se lá no quê. Eras o meu tudólogo. Ainda és. Divides esse espaço na minha vida com o António. E isso lembra-me um jantar há muitos anos em Paris, quase vinte, vê lá, eu miúda e vocês a beber e a rir, a trocar referências, a explicar-me a vida em pedaços, loucura e razão. Era bom ouvir-vos.
Morreste há um ano. Há dias morreu o Charrua, o pintor das cores fortes.
Estamos cada vez mais sós aqui em baixo. Estás em boa companhia aí em cima?
Um beijo

P.S: não sei a origem desta foto, perdoem, mas é maravilhosa e o autor(a) que me perdoe a ignorância.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

se as saudades fossem azuis


Seriam da cor do céu que está colado à minha janela.
Leio histórias infantis.
O tempo está no modo silencioso. Activei-o assim.
O miúdo vomitou com elegância. Passou a mão pela boca, refez a pose, casual, descontraída. Disse:

- Não é nada, só preciso de dormir. Fica comigo, mãe.

E eu fiquei. A contar os sinais do rosto, a ver o desenho perfeito das sobrancelhas, o revirar das pestanas, o rosa dos lábios. Tive saudades do outro miúdo perdido na natureza. Tive saudades deles em bebés, a rir, a dormir em almofadas, a pedir colo, a brincar com camiões e betoneiras amarelas.

Tenham paciência mas até segunda feira vou estar em retiro.
Com a família, como convém.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

amor à primeira vista


No escurinho do cinema, a história de amor entre robots, ultrapassando directivas informáticas, encheu-nos o coração.
Ficámos até ao fim, ouvimos Peter Gabriel a glorificar o Wall.E e saímos de mão dada.
As coisas mais simples são muito antigas.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Um texto quando é bom é muito bom

Texto de FERREIRA GULLAR

Notícia de um assalto inusitado


Havia necessidade de expressar o momento, quando um cheiro de jasmim atacou-me


CERTA noite, ao sair do prédio onde mora a Cláudia, fui surpreendido -seria melhor dizer agredido? assaltado?- por uma onda perfumada que me arrebatou: era o perfume que, como uma espécie de gás, emanava das flores de um jasmineiro postado ali, a poucos passos do portão do edifício.
Aturdido e inebriado, arranquei do jasmineiro um punhado de flores e, chegando-as ao nariz, aspirei-lhes avidamente o aroma que, para minha surpresa, revelou-se selvagem e quase me envenena. Embriagado, caminhei até o carro, nele entrei, atirei as flores sobre o banco ao lado e parti na noite, como não fosse para casa.
Mas fui e, ao chegar, depus sobre a estante da sala as brancas flores que já não exalavam tanto odor. Era óbvio que daquela inusitada aventura, nascesse um poema. E foi o que ocorreu, mas não naquela noite, que já havia sido suficientemente avassaladora.
Na manhã seguinte, sentei-me para escrever o poema que deveria expressar a aventura vivida na noite anterior, num jardim da rua Senador Eusébio, no Flamengo. Tinha diante de mim um papel em branco. Sim, e agora, o que fazer? Por onde começar? Não sabia. Tudo o que havia era uma necessidade de, com palavras, expressar aquele momento quando um cheiro de jasmim atacou-me e aturdiu-me, como um assaltante vaporoso surgido da treva.
O poema, sabe, nasce do espanto, isto é, de um instante em que o enigma sempre não explicado e oculto da existência se põe à mostra. E então vemos que todas as explicações não explicam tudo, não explicam o que o cheiro de um jasmineiro nos revela, de repente, de noite, num jardim do Flamengo.
Até certo ponto, por seu caráter inusitado, o poema é uma notícia: notícia de um fato fora da História mas que pertence a ela, e que o poeta, como um repórter bêbado, quer dar a conhecer ao mundo, um testemunho: um cheiro de jasmim atacou-o, de súbito, num jardim aparentemente seguro, às 11h50 de uma noite de quinta-feira.
No entanto, dito assim como notícia, a ocorrência não chega a ser um poema. Seria, quando muito, uma nota na página policial do jornal, assim: "jasmim agride cidadão desavisado, no Flamengo". Caberia, na nota, uma referência ao policiamento ineficiente do bairro pelas autoridades competentes.
E não haveria exagero, se se leva em conta que, quando saí do prédio e fechei o portão, mal desci os dois degraus até o chão de terra, o assaltante, embuçado no jasmineiro -e que era o próprio jasmineiro- saltou sobre mim, como sombra, ou melhor, como aroma, e me agrediu nariz a dentro. Um assaltante disfarçado de arbusto, agindo impunemente num bairro residencial constitui de certo modo um "furo" jornalístico. E nisso o poema se assemelha à notícia, frutos ambos do ineditismo e do espanto.
Mas não se escreve um poema como se escreve uma notícia, com lide e sublide, tendo por objetivo principal relatar o ocorrido, de maneira o mais impessoal possível, com total isenção e sem ambigüidade. Já no poema, muito pelo contrário, o autor se confunde com o que diz, mistura-se com o fato, de tal modo que não se distingue o ocorrido do imaginado. O poeta, na verdade, não informa -inventa; não instrui o leitor, confunde-o deliberadamente, para deslumbrá-lo.
E por que inventa e confunde? Porque o perfume do jasmim -qualquer perfume- é intraduzível em palavras, e é o perfume -a iluminação, na noite, pelo olfato- que o poeta quer dar no poema, ou quer, melhor dizendo, fazê-lo exalar no teu dia, leitor, já não através do nariz mas da boca, ao lê-lo. Quer te dizer o indizível. E ali está ele, diante da página em branco, onde tudo pode acontecer mas, onde, por ora, nada acontece: apenas o silêncio anterior à fala.
Mas, se o perfume não se traduz em palavras, o que dizer com as palavras? O que há a dizer, de fato, ele não sabe, já que ainda não o disse: é só vontade, impulso indefinido. Assim, antes de ser escrito, o poema é apenas uma difusa intenção, não existe e pode nunca existir. Como a palavra não diz o aroma, escrevê-lo é um jogo de probabilidades, de necessidade e acaso, que começa quando a primeira palavra é posta na página em branco. Ela reduz a probabilidade, que era infinita, ao dar início a um discurso possível e não sabido.
Essa primeira palavra, que poderia ser outra, deflagra a invenção do poema, a aventura imprevisível de escrever o impossível que o poeta dará por finda arbitrariamente. E assim o cheiro do jasmim, que não está nele, tornou possível inventá-lo, como a expressão da ausência do vivido, ou uma de suas possíveis presenças.



(Texto publicado no domingo, dia 17 de Agosto, na Folha de São Paulo, Brasil)

domingo, 17 de agosto de 2008

lá no fim do mundo


Longe daqui, no fim de um mundo qualquer, numa terra do nunca, os miúdos reuniram-se para ver o eclipse. Tinham acabado de chegar ao campo. As mochilas carregadas com sacos cama, colchonetes, cantis, livros, roupa, pacotes de bolachas. Às sete e vinte e seis em ponto estavam no meio do campo, isolados, sem nenhum vestígio de cidade, todos eles com o pescoço em esforço, encarando o céu. Nos próximos dez dias será assim: lavarão pratos com terra e na água do rio, cantarão debaixo das estrelas e darão imensas gargalhadas. Não pensarão nos confortos de casa, na televisão, no computador, no telemóvel. Enfim, talvez no telemóvel.
Dez dias sem falar para casa é estranho. Eu, aqui em casa, sinto o silêncio que vem com a falta do meu miúdo. Salva-me a imaginação. Consigo vê-lo daqui e fico feliz por estar feliz. Depois vem a saudade. E o miúdo mais novo, que ainda não embarcou na aventura do Mocamfe, explica:

- Só se tem saudades de quem se gosta.

É verdade.

(Para quem não sabe o que é o Mocamfe, por favor informe-se, faça pesquisa na internet e descubra como um campo de férias pode ser uma forma maravilhosa de estar em contacto com a natureza, promovendo-se valores humanistas e de constante partilha com o outro. De consumismo, individualismo e outros ismos estáo mundo cheio)

sábado, 16 de agosto de 2008

aos gritos no carro

Os miúdos, lá atrás no carro, cantam com o Jorge Palma, aos berros. O dia está cheio de nevoeiro. É Agosto?


O centro comercial fechou

E a Maria vai viver a vida mais longe
Longe das ilusões
Em cima das situações
Perigosas

O Toino não morreu no mar
Acabou de adquirir um castelo na Escócia
Enfim, não é bem na Escócia
É uma cave sombria
Em Gaia

O passado já lá está
Raio de uma sorte cinzenta
E o presente é uma réstia de esperança enquanto houver saúde
Há que cuidar do aspecto
Fazê-lo parecer natural

Por mais que seja cruel não há ninguém que ajude


Ninguém nos ensinou a usar
Nada do que recolhemos pelo caminho
Perto das ilusões
Entre o amor e as razões
Perversas


O passado já lá está
Raio de uma sorte cinzenta
E o presente é uma réstia de esperança enquanto houver saúde
Há que cuidar do aspecto
Fazê-lo parecer natural
Por mais que seja cruel não há ninguém que ajude

(Voo Nocturno, 2007)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

gata escondida

Quando a casa foi assaltada pelas crianças a gata escondeu-se numa prateleira com malas de senhora. Ficou recolhida ali na esperança de se tornar invisível. Com sentido apurado, as crianças descobriram-na e ela, com as orelhas espetadas, aguardou a maldade.
Uma das crianças disse

- Deixem a gata escondida, vamos mas é brincar.

Até o silêncio envolver a casa, a gata ficou ali, ponderando, quem sabe, na bondade, no desprezo, no barulho das crianças. Quando se levantou do esconderijo trazia um porte aristocrático. Afinal, escondida ou não, é uma gata.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

festa de anos

Receita para uma festa de anos:

arroz de pato (dois tabuleiros)
tortilha de legumes (dois tabuleiros)
saladas (duas penicas grandes)
pratos de queijo (4 pratos)
pão e grissinos (dois cestos)
sangria de champanhe (um balde de dez litros)
mousse de chocolate (duas penicas)
bolo de anos (com tartarugas ninja para dar um toque infantil)
sumos
água
café para quem ficar até mais tarde

erros cometidos: paté de santola, paté de salmão
resultado: uma noite em grande

terça-feira, 12 de agosto de 2008

nem mais

O homem riu-se e começou por dizer, gaguejando:

- Tu... tu... tu...

E o miúdo adiantou-se:

- Tutu é para o ballet!

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Saldanha City


Ia com os miúdos, arrastando-me na conversa sobre wrestling e depois sobre cinema e ainda sobre a playstation ou, ainda, sobre qualquer queixa do género

- Mãe, ele fez isto e fez aquilo...

- Não foi nada, mãe, ele é que ....


E de repente, no Saldanha, no topo do edifício do antigo Monumental, onde passei tantos desfiles de carnaval enquanto criança, vi o Batman a tomar conta de nós.
Batman é o meu herói preferido, o único que cria os seus poderes, o único que é suficientemente atormentado para ser misterioso e sedutor.
Bruce Wayne faz parte dos eleitos.
Apontei, com entusiasmo, para o Batman no Saldanha e os miúdos olharam com certo desprezo e fizeram

- ah, ah...

Já nada é como dantes.

domingo, 10 de agosto de 2008

Mahmoud Darwich sempre (1941-2008)

Passageiros entre palavras fugazes:
agarrem nos vossos nomes e vão-se embora,
Cancelem as vossas horas do nosso tempo e vão-se embora,
Levem o que quiserem do azul do mar
E da areia da memória,
Tirem todas as fotos que vos apetecer para saberem
O que nunca saberão:
Como as pedras da nossa terra
Constróem o tecto do céu.

Passageiros entre palavras fugazes:
Vocês têm espadas, nós o sangue,
Têm o aço e o fogo, nós a carne,
Têm outro tanque, nós as pedras,
Têm gases lacrimogéneos, nós a chuva,
Mas o céu e o ar
São os mesmos para todos.
Levem uma porção do nosso sangue e vão-se embora,
Entrem na festa, jantem e dancem…
Depois vão-se embora
Para nós cuidarmos das rosas dos mártires
E vivermos como queremos.

Passageiros entre palavras fugazes:
Como poeira amarga, passem por onde quiserem, mas
Não passem entre nós como insectos voadores
Porque temos guardada a colheita da nossa terra.
Temos trigo que semeámos e regámos com o orvalho dos nossos corpos
E temos aqui o que não vos agrada:
Pedras e pudor.
Se quiserem, levem o passado ao mercado de antiguidades
E devolvam o esqueleto à poupa
Numa travessa de porcelana.
Temos o que não vos agrada: o futuro
E o que semeamos na nossa terra.

Passageiros entre palavras fugazes:
Amontoem as vossas fantasias numa sepultura abandonada e vão-se embora,
Devolvam os ponteiros do tempo à lei do bezerro de ouro
Ou ao horário musical do revólver
Porque aqui temos o que não vos agrada
E temos o que não vos pertence:
Uma pátria e um povo exangue,
Um país útil para o esquecimento e para a memória.

Passageiros entre palavras fugazes:
É hora de vocês se irem embora.
Fiquem onde quiserem, mas não entre nós.
É hora de se irem embora
Para morrerem onde quiserem, mas não entre nós
Porque nós temos trabalho na nossa terra
E aqui temos o passado,
A voz inicial da vida,
E temos o presente e o futuro,
Aqui temos esta vida e a outra.
Vão-se embora da nossa terra,
Da nossa terra, do nosso mar,
Do nosso trigo, do nosso sal, das nossas feridas,


De tudo… vão-se embora
Das recordações da memória,
Passageiros entre palavras fugazes.

Ruy Belo 30 anos depois


Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhaste súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente

sábado, 9 de agosto de 2008

hoje de manhã

Ir a um hospital não é um passeio agradável. É uma obrigação. Hoje de manhã, o hospital estava despido de gente. Gente doente tinha rumado à praia, por certo, tinha adiado a doença, tinha decidido ser saudável, comer legumes, beber muita água, fazer exercício físico. O mundo, na sala de espera vazia, pareceu-me um anúncio americano de beleza e músculo. Fiquei de fora. Quando o técnico me chamou para fazer a Tac estranhei a falta de janelas e fiz um comentário. O técnico encolheu os ombros e disse-me que era melhor assim

- Não vejo o que se passa lá fora.

E eu - cheia de imagens de pessoas saudáveis a beber sumos de frutas, a exibir os seus corpos esbeltos, sorridentes, felizes - concordei.
Fiquei quieta por uns instantes e depois voltei para casa.
No quarto tenho sempre as cortinas corridas. Estou em sintonia com o técnico da imagiologia. Ele é que não sabe.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Eu em B.D.

O médico tinha um ar simpático, sabe? Foi até carinhoso. Gozou com a situação quando me debrucei na marquesa e fiquei com as calças pelo joelho. Eu ali sem me mexer com uma espada gigante, uma verdadeira excalibur, enfiada nas costas. Literalmente. E a rádio ao fundo

- M80, todos os êxitos dos anos 70, 80 e 90.

E o médico a querer saber se dói mais aqui - e vá de carregar com os polegares - ou talvez ali mais abaixo. Uma tortura. E depois a pergunta que não era uma pergunta

- Está a suar.

- Sim. Ou é isso ou digo palavrões. De dor.

Se eu fosse um desenho animado seria assim: a espada nas costas e eu correr da dor e os restos de mim a ficar pelo caminho em riscos de cor, preto e vermelho, amarelo e azul, e o médico a ser esmagado por um rochedo inofensivo.
Deitada na marquesa com um cocktail
de analgésicos e de anti inflamatórios fiquei a pensar na vida.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Saving Grace


A estreia foi ontem num canal da televisão por cabo. Uma série com Holly Hunter no papel principal. Em resumo: uma mulher recebe a visita do anjo da última oportunidade e terá de rever a forma como vive.
Fiquei a pensar naquilo do anjo que masca tabaco e bebe cerveja, que tem asas de prata e que nos pode carregar até ao abismo para nos abalar. Depois pensei, como sempre nestas coisas, nas Asas do Desejo e ainda na Cidade dos Anjos. Espero que o meu anjo seja como Nicholas Cage.
E até pode parecer estranho ou pitoresco, mas não é uma qualquer crença para servir a literatura: eu acredito em anjos. Há os de várias formas, tempos e matérias. É só preciso estar atento. Um dia conto-vos uma história. Fica prometido.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

retomar o sonho

Sonhar enquanto dormimos é estar fora, sozinho, longe e protegido da realidade ou da dor. Retomar o sonho é uma capacidade estranha que se desenvolve raramente.
Acordamos, o sonho escapa-se e, quando voltamos ao sono, conseguimos retomar o mesmo sonho.
Faz de nós seres poderosos e pode ser viciante.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

por escrito

O homem afastou os cabelos com a mão, uma mão pequena, delicada, quase feminina. Não tinha nada para fazer. Com regularidade verificava o telemóvel. Olhava para as pessoas na recepção do hospital. Afastava de novo os cabelos. Havia um índice de ansiedade de tal ordem elevado que era quase constrangedor: sentado na cadeira o homem fazia uma maratona, estava em esforço, todo ele exposto. Por fim, o telemóvel deu um sinal, um pequeno apito, e o homem disponibilizou-se de imediato a ler. Sorriu e começou a teclar furiosamente. Fosse o que fosse, naquele momento, por escrito, alguém tinha terminado com o dia miserável daquele homem sentado na sala de espera do hospital. Às vezes basta uma palavra ou, melhor, a abreviatura de uma palavra como bj ou algo assim.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

a realidade

A minha mãe, já rindo, esclareceu sobre a veracidade do relato. Um episódio da vida real passado no Alentejo profundo. Ela contou:

- Então a minha amiga, que é de Ferreira do Alentejo, foi a um enterro. No caminho da casa mortuária lá do sítio cruzou-se com a antiga empregada dos pais dela. A conversa fez-se logo ali na rua e a antiga empregada explicou que vinha das compras. Ela disse: "Fui ali comprar uma televisão para o meu Toy. Uma dessas, sabe? um plasma. Olhe, uma televisão sem cu."

Rimo-nos muito e a minha mãe encostou-se à cadeira com ar satisfeito.
Missão cumprida.

domingo, 3 de agosto de 2008

hoje de manhã

O miúdo já não é tão miúdo assim. 
Tem os óculos postos e vê televisão mudando de posição a cada dois minutos. 
Por vezes ri-se. 
Há um calor medonho lá fora, pessoas na piscina. 
É domingo.
E os domingos são assim: em casa.
A casa como santuário, uma cápsula protectora, uma nave mãe. 

sábado, 2 de agosto de 2008

Notas sobre o pôr do sol em Oia

O pôr do sol é pelas oito e meia da noite. As pessoas deslocam-se como nuvens para Oia, encostam-se às paredes caiadas de branco, aos muros; sentam-se nas escadas, tiram fotografias e ficam em silêncio. O céu vai-se transformando, desafia as cores e acolhe o sol com um sentido de amor que pode ser confundido com melancolia. Quando resta uma nesga cor de fogo há um movimento colectivo: primeiro as pessoas suspiram, depois batem palmas. Dizem que há quatro mil anos que o pôr-do sol em Oia (lê-se Ia) é um espectáculo diário. Recolhendo ao interior da cidadezinha, pelas ruelas cheias de lojas de ícones, amuletos da sorte, sabonetes de azeite e outras coisas mais turísticas, há uma quebra de luz e o céu, o céu imenso das estrelas, abre-se nas nossas cabeças e chama-nos a atenção.  A electricidade deu cabo do resto: depois do pôr do sol, as estrelas brilham como nunca e esse é, desconfio, o verdadeiro espectáculo.