sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 10 Fim

(Cheira o caril a cozinhar)

Nessa noite, sozinha na nossa cama, sonhei que o cozinhava. Ele que adora a minha comida. Era capaz de esperar quatro horas por um borrego assado, um couscous mais sofisticado, uma tagine de mel e frango, uma tarde de faisão com cebolinhas. Ficava aqui, aqui mesmo, a ver os meus gestos, a fazer perguntas infantis e a falar ao telemóvel. Em vez de me sentir vigiada e escrava do seu apetite, eu dançava pela cozinha, feliz, feliz.

(Rodopia)


Nunca fui tão feliz na cozinha. Com ele aqui a ver-me no meu melhor. Um homem agarra-se pelo estômago, dizem. Que ironia. Casou ele com uma chef e mesmo assim não lhe bastou. Levou o teu saco de ginástica para outro lado qualquer. Espero que se alimente de comida de plástico. Espero que ninguém lhe faça sopa de tomate com farripas de ovo cozido ou com natas e alecrim. Sobretudo espero que tenha dores de estômago. Regulares. Foi uma praga que lhe roguei no dia em que sonhei que o cozinhava. Cozinhei-o como naquele filme do Peter Greenway sobre o ladrão, a amante e o amante dela. Limitei-me a ser mais criativa e a multiplicá-lo por diferentes pratos. Não o desperdicei. Isso nunca. Primeiro parti-o aos bocados, sem poesia, sem medo. Com um destes cutelos.

(Mostra a faca)

Estava na minha cozinha, lá no hotel, uma cozinha enorme, cromada, imaculada. Parece um laboratório a minha cozinha. É o que dizem. E ele? ele pingava sangue por todos os poros deitado aos pedaços na minha mesa. Tinha as facas alinhadas, como um cirurgião, e tachos e panelas à minha volta. Atirei as suas mãos para um tacho para fazer com grão, já sabem como gosto de grão. Assei as suas pernas e fiz os seus miolos num wok com um pouco de azeite com estragão.

(Vai à janela e diz lá para fora)

Lamento se vos desgosto com esta descrição. Era o meu marido e eu comi-o. Estava bom. Um pouco enjoativo para o final. Acordei suada.

(Encarando a plateia)

Sabem quando o suor fica a empastar o pijama? Como se tivéssemos medo da concretização exacta do que sonhámos? Porque eu, eu, seria bem capaz de cozinhar qualquer coisa. Foi essa a distinção verbal que tive no fim do meu estágio. Ser capaz de cozinhar qualquer coisa. E o sonho era real. Fiquei em pânico e corri para o telefone para ouvir a voz dele. Eram cinco e pouco da manhã e ele respondeste:

(Muda de voz)

O que é que tu queres? E no seu tom de voz, a segunda pessoa do singular – o tu que era eu – era uma sentença relativa à minha imbecilidade, à minha estupidez. Ele estava vivo e farto de mim.

(Senta-se de novo)

Durante dois meses não nos falámos. Voltei a trabalhar todos os dias. Desenvolvi uma técnica nova para fazer espumas, para impregnar sabores em massa folhada. A minha tristeza concentrava-se na beleza da cozinha: tinha ali todo o seu esplendor. Até ao dia em que me encontraram no frigorífico das carnes a chorar. Um clássico, não acham? Meti baixa. Obrigaram-me a meter baixa. Dizem que os chefes têm um ego e vaidade equivalente ao seu talento. O meu ego esmoreceu, acredito que o meu talento também. Nunca foi isso o mais importante. Podia fazer uma lista de coisas importantes e nenhuma passa pela comida. Cozinhar é não estar sozinho. E na cozinha eu sou a estrela. Cozinho qualquer coisa, já vos disse? Não preciso de Deus nem dos homens para cozinhar. É um acto solitário. Como um escritor, um poeta, um músico. Amanhã regresso ao trabalho. Ele começou a mandar mensagens há uma semana. Mensagens cordiais, mas significativas, mensagens que me prendem como a carne no cutelo. Palavras que soam a coisas que quero ouvir, mesmo que sejam profissionais

(Muda ligeiramente o tom de voz)

Vou dar um jantar para dez pessoas, adorava que fosses tu a chef. Pode ser? Faz um orçamento. Um beijo.

(Muda para a sua voz normal)

E depois um Z para assinar, a sua inicial. Começou assim a troca, o diálogo por escrito. Mandei várias sugestões de menus, preços, ideias inovadoras. Ele respondeu sempre. Bem disposto. Como se a palavra escrito tivesse essa magia do som e eu percebesse pelo tom que já não está farto de mim. Amanhã começo a trabalhar. Depois de amanhã é o jantar dele, na casa dele, o jantar que eu vou cozinhar. Vamos estar frente a frente. Finalmente conseguirei ver todas as partes que cozinhei em sonhos e talvez falar-lhe desse sonho e da maldição de o ter em mim, como um invólucro, uma pele, uma geleia. E ele? Como é que acham que estará? À espera de mim, a sua mulher? À espera de mim, a chef? Seja como for, levo-lhe os papéis do divórcio, porque o amor quando azeda e passa de prazo pode contaminar tudo e eu, nesta minha cozinha, completamente sozinha, posso-vos dizer que não quero azedar, quero manter-me no lado dos frescos. Desculpem a piroseira. A metáfora da merda é melhor, mas não se aplica. Não se pode aplicar. Porque eu posso cozinhar qualquer coisa, não é? E isso inclui a minha vida. Acho eu.

(Sorri)

Podia fazer agora um...

(Abre o frigorífico)


Sim, carpaccio de abacaxi com hortelã fresca. Simples. Mas eficaz. Ajuda a digestão. Já vos disse que apareci em todas as revistas gourmet que existem na Europa? Todas sem excepção. Não é um grande feito para uma mulher, as feministas que me perdoem, é um feito para qualquer pessoa, independentemente do sexo. O mundo seria mais simples sem sexo, sem sexos. Isso, sim, seria um acontecimento, não acham? Vou abrir uma garrafa de vinho.

(Fá-lo com todos os gestos de um profissional)

Para comemorar o fim do dia.

(Olha para a janela, está escuro lá fora)

À minha. E à vossa.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 9

(Desliga, por fim, a água, tinha-se esquecido)

Como é que um marido desaparece? Começa por ser em pequenas coisas – as horas que se esqueceu, um jantar em silêncio, algo que não partilha, um pensamento isolado, a vontade de fugir - e depois em concreto já cá não está. Até que me deixou uma mensagem no email a dizer que o amor não podia tudo, que a verdade das coisas era demasiado complexa, que eu o absorvia em demasia. O meu marido acusou-me de ser demais. Mais que a conta. Seria, porventura, tida como um ser especial? Não. No email ele teve o cuidado de sublinhar a minha normalidade. Escreveu assim:

(Muda de voz)

Nada do que fazes é consequente; esgotas-me. Estou cansado de ti e de mim, de nós. Perdoa-me. Talvez eu não seja suficientemente bom para ti. Para nós.

(Voz normal)


Nós.

(Começa a cortar cebola com profissionalismo e, num gesto de fúria, começa a chorar)


Sim. Tudo passa. É uma fase. É assim. E eu estou tão cansada de combater a fase, a normalidade e, claro, o regresso da tristeza. Ninguém me quer? Tenho algum defeito inultrapassável? Não agrado? Onde? Na cama? No que digo? É a minha roupa? Ou sou só eu? Só eu...

(Novo anúncio sonoro de email. Grita)


Larguem-me! Não quero saber.

(Recompõe-se, vai ao computador, limpa as mãos a uma toalha de cozinha)

Sim, ainda estou viva e funcional. É bom ter amigos que perguntam. Mesmo que tenham mentido e traído. Mesmo que me digam uma coisa e pensem o contrário. Estou convencida que é essa a natureza dos amigos. Para o bem e para o mal, vão aplacando a nossa realidade, servindo de almofada para as pancadas. Se nós deixarmos, claro. Porque se não deixarmos, os amigos afastam-se.

(Muda de voz)


Não há paciência para ela, coitada. Está obcecada. Não atende o telefone, não devolve mensagens. Gosto muito dela mas não tenho vida para isto.

(Voz normal)


Se não disseram isto, disseram algo de semelhante e os poucos amigos que eu tinha ficaram do outro lado do muro, numa outra realidade, cansados das minhas lamúrias, de se sentirem impotentes na ajuda que queriam prestar-me. Queriam: formatar-me para outros dias; decorar-me de boa disposição e pensamentos positivos; afastar-me de ele como quem afasta uma criança do fogo. Os meus amigos estavam convencidos da sua sapiência sentimental, sabiam melhor e mais do que eu. O que até é provável, se querem saber.


(Regressa ao computador e responde à mensagem)


Fico aqui a olhar as letras no computador, o nome dele e a pensar na esperança como a primeira droga da humanidade. Eu tenho esperança que o passado possa ter sido diferente. Quer dizer, tenho esperança que tivesse tido a lucidez de mudar o que obviamente não mudei. Sofro disso. Do passado. E tenho os emails deles para me recordar, não é? Houve uma altura em que o ridículo de ser quem sou se manifestava na partilha destes emails com os tais amigos e amigas.

(Muda de voz)


Meu Deus! Como é que tu aturas isto? Tu não vês que ele está a gozar contigo? Não te atrevas a responder? Porque é que não experimentas fazer terapia?

(Fecha o computador e volta à voz normal)


Não quis fazer terapia, lamento. Para me confessar vou ao padre, porque sempre é mais económico e, além disso, tenho salvação. Duas aves Maria e um pai nosso, dois rosário e uma novena. Coisas de Deus, o tal em que não acredito, mas que tem um sistema muito funcional e ao qual podemos recorrer em caso de desespero. Fazer terapia seria querer mudar a realidade e isso, ao contrário do que todos possam imaginar, eu não queria, nem quero. Voltamos à metáfora da merda.

(De faca na mão)

Quando o mundo desmoronava à minha volta, a minha casa ficou mais vazia, sem os livros dele, os sapatos dele, as fotografias dele, os jornais desportivos dele e a enorme estatueta que o pai lhe ofereceu quando acabou o curso. Houve um período de assimilação. Não era um período de luto, porque me recusava a acreditar na nossa morte. Era apenas um desvio. Ele tinha saído para pensar. Para ter tempo, para pensar, para olhar o mundo lá fora. Acabaria por perceber com clareza todas as minhas virtudes e a nobreza do meu amor. Havia algo de cavalheiresco nisto tudo e o cavaleiro andante era eu. Fui durante muito tempo. Mandava-lhe mensagens e ele respondia sempre. Sempre que o fazia o meu coração batia mais. Batia melhor. O coração é um músculo interessante, com uma agenda e orientação só dele e o meu batia com o nome dele a piscar no computador, com o seu toque no telemóvel. Podia ser para tratar de um pormenor sem significado verdadeiro para a rotação do planeta, mas ele era o sol e eu a terra e nada me fazia mover desta condição. Ele ligava porque tinha esquecido um extracto do banco. E eu media as suas palavras. Todas. Analisava os verbos aplicados, os adjectivos, as pausas, as entoações a forma como se despedias. Era patético. No mínimo. Isto já foi há algum tempo. Mas continua. De alguma forma. Porque eu acho ainda que o meu passado se vai transformar e o meu marido vai voltar, comer a sopa, o caril e os bolinhos salpicados com noz. Eu serei uma esposa perfeita.

( Senta-se, exausta).

Tenho tanta pena de mim. Às vezes. Como agora.

(Levanta-se)

Outras vezes não, perdoem-me, mas não, tenho pena dele, porque não entendeu nada de nada, nada de mim, nada do amor. Nas suas mensagens vou intuindo que não está bem, que precisa de colo e que acha que legitimamente o pode encontrar aqui. O que aconteceu quando ele decidiu voltar? Duas semanas depois do abandono chegou com um saco do ginásio e disse outra vez:

(Muda de voz)


Preciso de ser abraçado todos os dias.

(Voz normal)

Não lhe fiz perguntas e quando fiz, por fim, eram todas sobre mim e lamento isso. Não devia ter querido saber se o problema era meu, se era eu, a minha cabeça, o meu corpo, mas o que querem? A insegurança mata e mata mais depressa quando estamos sozinhos e temos tempo para pensar. Ele riu-se muito, ainda me lembro do tom do seu riso - não sei hoje se jocoso, se genuíno - ele esticado na cama, a sua perna em cima da minha. O conforto da conjugalidade pode ser apreciado nesses gestos depois do coito, sabem? Sim, devem saber. O casamento é também isso, o momento em que nos abraçamos depois do sexo. E naquele momento em que perguntei, chorosa, sem um pingo de dignidade pessoal, sem nada para esconder, com as minhas armas depostas, ele riu-se e desvalorizou o meu desgosto. Deu-lhe uma não importância e assim encolheu-me, diminui-me, amachucou-me e, já insignificante, pôs-me no bolso. No dia seguinte saiu para o trabalho e levou o saco. Não perguntei nada. Fiz jantar, acendi velas. Fiz lombo recheado com presunto e queijo, regado com vinho do porto, e para acompanhar puré de castanhas. Estava, asseguro-vos, divinal. Comi-o todo.

Peças em não sei quantos actos 8

(Triste)

Agora por outras razões. Naquele tempo - parece que foi há tanto tempo - o tempo não tinha qualquer poder sobre nós. A minha tristeza foi suspensa por prazo indeterminado. Viver na minha pele era uma consequência da existência dele e ele era o princípio de um destino que seria nosso e só nosso. Ele dizia:

(Muda de voz)

Preciso de ser abraçado todos os dias.

(Voz normal)

E eu abraçava-o. Com cuidado. Com força. Com tudo o que tinha. Há na entrega ao outro uma beleza ímpar que não se repete. Senti isso. Senti sempre essa beleza quando me beijava. O melhor do sexo passou a ser esse abraço que nos ligava no cansaço, o corpo dele no meu, descaído sobre mim, a minha mão no seu peito, as pernas a tocarem-se; por vezes só um pé no pé. Havia assim uma perfeição muda, suada, animal e descansada das coisas do mundo. Não pensava em nada. Nem mesmo nele. Pensava no meu desejo e na corrida para o prazer as vezes que fosse possível. O nosso sexo era eficaz, julgo-o hoje com a distância de quem não espera retomas, porque era profundamente egoísta. Encarávamos o sexo na procura do êxtase e mais nada. Não me venham com tretas sobre a singularidade do momento, os corpos enlaçados, somos só um no acto e merdas dessas. Nada disso. A perfeição era a conquista antecipada do orgasmo e nessa medida estávamos bem um para o outro porque o fazíamos em separado, usando o corpo do outro como tantas pessoas usam comida. Ter prazer. Deixá-lo durar e procurá-lo novamente. Ele fazia-me sentir adolescente, ninfomaníaca, ousada e, por fim, fodível. Sim, porque uma mulher pode sofrer por esse excesso de preocupação com o sexo alheio e por sentir que o seu falha precocemente. Um sexo estragado. Ineficaz. Sem sabor. Posso não repetir a dose nunca mais. Como é que se diz? Não devemos voltar ao lugar onde fomos felizes. Eu fui muito feliz.

(Suspira)

Não sei se ele foi. Isso agora pouco interessa. Quer dizer... interessa-me apenas a mim porque me devolve ao lugar natural de mulher estragada. É uma ironia, não é? A vida não tem 120 minutos, é um filme que corre vertiginoso e sem guião. Dói e cansa. E no fim? Qual é o objectivo? Vamos reencarnar? Voltar ao princípio ou não resta nada de nós, absolutamente nada quando o corpo se desliga? Às vezes fico a olhar a carne à minha frente e vejo-me. Carne a apodrecer. O tempo não pesa o que nos tornamos, pois não? São os outros que nos medem e pesam, que nos viram e reviram, que nos dão significado. Eu sabia que voltaria a estar só, terrivelmente só.

(Senta-se no banco, faz uma pausa e levanta-se novamente)

De alguma forma inconsciente era claro que a vida não podia ser aquilo e que terminaria. Algures na minha cabeça eu sabia. Sempre soube. Como se sabe que tudo isto...


(Abre os braços para designar a vida)


... é precário, uma projecção mental do ideal. O tal filme que fazemos para nós, uma pitada de melodrama, de comédia e de terror. Tudo sem legendas para que se percam algumas palavras, acções e pensamentos. Ele e eu. Era como se a nossa história fosse um atropelo na ordem das coisas, uma dimensão paralela que se esgotaria por não ser coincidente, por fugir ao padrão, por não ter um carril colectivo onde assentar. Sabendo do fim - sabendo do mal que me podia fazer - deixei os dias correr. E, claro, um dia ele desapareceu. Deixou de ser transparente.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 7

(Os bolos estão no forno, prova a sopa e desliga-a)

O que desprezei foi a falta de consideração pelo morto e ainda o medo. Detestei o medo dele. Lembro-me de pensar que não seria possível viver com ele o resto da vida. Porque o resto da vida, num casamento, implica uma série de coisas. Posso fazer uma lista. Devia ter feito uma lista antes de casar a segunda vez. Ora, uma receita para um casamento, bom ou nem por isso.

(Parece meditar)


... Ingredientes: harmonia, capacidade de diálogo, de partilha, confiança, sentido de humor, dedicação, aceitação dos defeitos do outro, não como um desafio que se pretende quebrar, mas como parte integrante do que se ama. Estou, claramente, a fazer filosofia básica. Um casamento é ver alguém a desfazer-se em merda, cheirar mal e não querer sair dali a correr. Não me ocorre nada melhor.

(Faz uma pausa)


Acho que vou fazer um caril de grão...

(Começa a mexer nos armários outra vez. Há um sinal sonoro de entrada de mensagem que vem do portátil. Surpreende-se)

Quem me quer? Hum, pois. Está tudo a postos, tudo perfeito, nada de preocupações.

(Escreve a mensagem, quando termina vai abrir um frasco de grão e um frasco de leite de coco e continua a reunir os ingredientes)


Onde é que eu ia? Sim, casar ingredientes é tão complexo quanto casar pessoas. No outro dia fiz uma salada de queijo cabra com morangos e vinagre balsâmico. Parece uma mistura estranha. Funciona. De uma forma quase próxima do perfeito. O meu segundo casamento foi assim. Eu saltei do penhasco. Abandonei o meu emprego, a minha carreira. Queria ter um filho. Queria ser a mulher de alguém e sentir nesse estatuto a dimensão extraordinário de me saber melhor pessoa por isso. Era amor. Falávamos horas sem fim. De tudo. Não havia segredos. Contou-me tudo. Ficou transparente.

(Abre a torneira)


Como água. Éramos um do outro e contra o mundo e nessa união escondemo-nos da maldade. Por uns tempos. Não havia necessidade de ir à rua. Como agora. Ser um do outro sem condições é inebriante. O outro pode se tornar um vício. A dependência instala-se devagar, traiçoeira, não damos por ela, é fingida e cruel. Ataca-nos num momento de ausência. Ele que não está o mundo deixa de fazer sentido. De uma forma desproporcionada. Tudo se desfaz. Percorremos os mesmos passos à procura, como quem espera e procura a própria sombra. O mundo parece ter encolhido. Não existe China, Amazónia, Equador, gelo a derreter na Pólo Norte. O mundo é ele e, por isso, podemos abdicar do sol e do rio lá fora, de rir e estar. Como agora.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 6

(Fecha os olhos como se estivesse a ouvi-lo)

Era quase perfeito. Ainda não tínhamos 20 anos. Eu sentia que o meu corpo era uma experiência científica e queria ser uma cobaia. Ele estava mais interessado em perceber a diferença de colloratura da Maria Callas. Foi aqui que começou a minha suspeita: sou ou não sou uma infodível? Gostava tanto dele que quando arranjei um outro namorado fui a correr comprar o mesmo perfume. Quando tinha saudades do primeiro obrigava o segundo a ouvir óperas infindáveis e cheirava-o. O segundo, chamemos-lhe assim, citava Woody Allen: “Tanto Wagner dá-me vontade de invadir a Polónia”. Era engraçado, o segundo. Não gostava muito de sexo, ou melhor, gostava quando gostava, na hora dele, no momento dele. Era uma coisa rápida e repetia-me ao ouvido:

(Murmura)


...não te mexas, não te mexas. Eu ficava ali como... como um frango no churrasco a pensar na minha lastimosa infodibilidade. Mas este era bondoso. Perguntava-me todos os dias como é que eu estava e eu todos os dias respondia, invariavelmente: cansada. Era mais forte do que eu, mais forte do que outro cliché qualquer.

(Fingindo responder)


Bem, querido, muito bem, estou maravilhosa, estou tão feliz. Fazes-me tão feliz é só pena que me doam as costas.

(Voz normal)

Todas as minhas conquistas profissionais levavam a este cansaço e eu era um bombeiro voluntário para as causas maiores e menores, sempre disponível e sabedora. As coisas que eu sei? Não se imagina as coisas que eu sei. Ou que posso fazer. Ou que fiz. Molhos, misturas, combinações, sobreposições, impregnados, espumas e névoas. Uma verdadeira feiticeira.

(Faz uma pausa)


Casei aos 30. Com o terceiro. Não fomos felizes porque não estava escrito, acreditando na minha mãe e na mãe dele: Deus as guarde por concordarem nisto porque em tudo o mais discordavam sem piedade. O meu casamento durou dois anos. Foi rápido. Foi mesmo indolor. A recordação mais viva que tenho do casamento é uma imagem do meu marido a chorar o pai morto.

(Começa a colocar a massa nas formas e abre o forno)

Parecia um miúdo. Não parava de dizer:

(Muda de voz)


Tenho tanto medo de morrer, tenho tanto medo de morrer.

(Voz normal)


E eu? Não lhe podia dizer que não ia morrer, por isso fiquei ali a ver. A minha mão no ombro dele. Parecia uma cena de filme. As pessoas chegavam à capela e apresentavam-me as condolências de forma solene e ignoravam o filho do morto porque ele se prestava a isso. Só dizia:

(Muda de voz)

Tenho tanto medo de morrer, tenho tanto medo de morrer.

(Voz normal)

Fazia pena. Por um lado. Detestei a sua fraqueza e desprezei-o. Por outro... Há sempre dois lados, não é? Mesmo na cozinha: o lado de fora do rosbife, o seu interior; a crosta de um bolo; o seu recheio. Enfim...

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 5


(Voz normal)


Coisas assim. O mais engraçado é que socialmente rimos destes programas, destes conceitos cheios de bom senso e sabedoria básica. Rimos por desprezo intelectual, claro, rimos porque a infelicidade tem mais glamour, uma maior potencialidade para nos transformar em alguém interessante. Isso aprendi com a minha mãe e com todas as outras mulheres da minha vida, a minha irmã, a minha melhor amiga, a minha colega na escola, aquela que me bajulava na faculdade para eu fazer os trabalhos de grupo sem ter de se maçar. Sofrimento e dor são sinónimos de uma condição intelectual que nos almejara um outro qualquer caminho de sucesso que ultrapassara as conquistas das nossas mães e avós. Grande frase. Uma merda. Digo eu. Prefiro todas as séries americanas de violência, onde o bem e o mal não conhece fronteira precisa. Séries sobre polícias, sobre psicólogos que fazem perfis de assassinos. Fico a olhar para isto e a pensar: são tão generosos, dão tantas ideias a quem precisa delas, ideias de violência e crueldade infinita. Ideias exequíveis. Tremendamente fáceis de imitar. E eu começo a imaginar os potenciais assassinos que cada episódio gera; homens e mulheres com um bloco na mão a tomar notas. Sentados em frente à televisão, escrevinhando: a melhor forma de escapar; de matar a mãe, de dar o golpe do baú, de morrer. Uma merda.

(Suspira)


E eu aqui, pacatamente, na cozinha a ver se não me engano na quantidade de farinha para estes bolinhos. A fazer os mesmos gestos de sempre. Gestos femininos. Cozinhar e lamuriar. Duas combinações possíveis, que encaixam na perfeição, que contribuem enormemente para o avançar do Planeta, cansado na sua rotação ligeira. É preciso um salto de fé para ultrapassar as convenções. Eu sou prova disso. Não fiz o percurso esperado e tive um sucesso precoce com o qual, reconheço agora, lidei mal por ingenuidade. Achei que era a minha hora. Acabar o curso, estagiar numa grande cadeia de hotéis, chegar ao topo antes dos 30 anos, ter um grande ordenado.

(Elevando a voz)


Mundo: eis as minhas conquistas.

(Voz normal)


Não consegui, porém, abandonar a ideia da tristeza ou do sofrimento, da dificuldade de estar e de viver. Antes de morrer, morri como tantas outras mulheres da minha geração e de todas as gerações anteriores. Como se a infelicidade fosse uma dádiva ancestral. Um estigma. Não combati esse sentimento com a mesma convicção com que me esfolei para fazer uma carreira digna de qualquer outro. E não, não

(Abanando a cabeça)


... não vou fazer desta lamúria um discurso sobre homens e mulheres, porque francamente, estou-me na tintas para a distinção. Surpreendidos? Não faz o meu género. Não vale a pena. Os homens podem ter força, poder ou ser simplesmente patéticos. O meu primeiro namorado era a minha alma gémea. Cantava ópera. Tinha uma voz castrati. Linda. De mulher. O que ele gostava de se imaginar num palco a cantar uma ária da Norma. Casta diva.

(Muda de voz)


Consegues ouvir, querida? Consegues? Não é uma maravilha?

domingo, 26 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 4

(Senta-se no banco, cansada)

Claro que se eu me suicidar Deus não irá comparecer a esta pequena aula. Mandará alguém? Um anjo caído em desgraça com asas negras? Um anjo jocoso? Ah, eu não acredito em Deus. Não me é conveniente. Lamento. Agora não posso. Quando era mais nova, talvez. Não me debatia com Deus, imaginava os anjos, imaginava-os sem asas, a olhar para mim, a ouvir. Talvez tudo isto tenha a ver com a minha vida, quem sabe? Não consigo acreditar. Na verdade, não acredito por princípio em nada ou ninguém. O bem e o mal têm sempre uma adversativa, um contra argumento, uma outra perspectiva e, no fim, tudo depende. E essa generosidade de factores perturba-me. Sinto-me uma sobrevivente. Como nos relatos que ouvimos das diferentes atrocidades que ocorrem no mundo: pessoas que estiveram em campos de concentração; pessoas que passaram fome; que ficaram órfãos em crianças; pessoas abandonadas; pessoas abusadas. Consigo imaginar a dimensão da tragédia de qualquer um. Imaginar é uma forma de viver. É mais fácil imaginar uma vida a partir do outro, da história do outro. É mais fácil do que construir uma vida. Seja ela qual for. E o mais extraordinário neste decadente, embora avançado, século XXI, é que não temos de conviver para ouvir as histórias dos outros. Basta uma televisão.

(Olha para a televisão)


Ou um computador.

(Olha para o lado e liga o portátil)


Posso ficar bêbada de gente e de histórias a partir destes quadradinhos de tecnologia. Não nos deixam sozinha. Dão-nos sentido. Inspiram-nos. Engordam-nos de nada. De um enorme nada que não visualizamos, mas que nos engana a fome de alma, de substância. Ajudam-nos a relativizar as nossas pequenas desgraças pessoais. Sempre. Olhem agora

(Encara a televisão)

Há estes programas com psicólogos e mulheres bem sucedidas, que falam pausadamente e que explicam teorias sólidas sobre a felicidade. Apelam à nossa vontade de ser feliz. De rir. De ser bem sucedido. Dizem-nos para viver um dia de cada vez. Que a procura da felicidade em si não traz felicidade. Fazem testes! Deve ser uma coisa de inspiração divina, os testes.

(Altera o tom de voz)

Dê uma pontuação de um a sete, sendo sete o mais alto. Quer alterar alguma coisa na sua vida?

sábado, 25 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 3

(Desanimada, começa a tirar formas de bolinhos de um armário)

Claro que já passei esta fase. A minha mãe é igual a tantas outras e, por vezes, é capaz de gestos absurdos de amor, de amor incondicional, que eu só não vejo porque não me interessa. É mais fácil não ver. Sou crescida, o mundo já não se divide entre bons e maus; entre um minuto de atenção da minha mãe ou a sua imagem compungida, ao telefone, a resolver qualquer problema emocional de um ser outro que não eu, alguém mais importante que eu por certo. Agora faço sopa e bolos e não os partilho com ninguém porque, porque... porque conclui que não vale a pena sair de casa, conviver, dar-me aos outros, esperar retorno, ser feliz. Banalidades. Coisas de mulher. Não, eu devia estar lá fora...

(Vai à janela)


... a cumprir o meu papel, a ser... A ser qualquer coisa. A funcionar. A fazer coisas. A pensar o mundo. Como avançar, como criar, como poupar o planeta, como ser activa e defensora dos animais. Coisas assim cuja vulgaridade assusta, mas que são, afinal, a condição humana. Não será, porventura, dignificante uma mulher estar na cozinha a dizer estas coisas e a pensar que o ideal é não fazer nada. Deixar-me estar. Saltar de um penhasco. Da janela. Não desta janela, claro. Não teria sucesso.

(Continua a cozinhar)


E o lado trágico da morte não me enternece. Há o pitoresco que a morte sempre traz: como é que a minha mãe reagiria? O que vestiria no meu velório? Haveria um velório? Chegaria eu ao Céu? E Deus falaria comigo? Prefiro pensar que Deus falaria comigo para me esclarecer sobre os mistérios da vida, assim como numa aula de código para aprender a guiar o automóvel. Deus sentar-se-ia à minha frente com um livrinho com perguntas e respostas múltiplas. Portaste bem? A) sim B) às vezes C) quem? Eu? C) vá à merda

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 2

(Voz normal)

E depois era vê-la, uma montanha russa de estados de espírito. Imaginem: uma mulher irritada, com as mãos em desassossego, mexendo na cara, coçando a cabeça, o tom de voz esganiçado. Depois dos comprimidos? Vinte minutos depois, outra mulher. Calma e dolente, uma coisa mole, os olhos meio vidrados. A verdade é que os comprimidos eram uma realidade extra, um cenário que a minha mãe procurava compor porque ele nunca tomava um comprimido, tomava dois. E nesse exagero nada inocente procura adormecer para tudo e para todos; procurava uma ausência de si própria sem abandonar o corpo. Lenta e precisamente. Os comprimidos arrancavam-na da matéria da realidade, como quem arranca as vísceras por momentos. Ficava, apenas os miúdos da minha mãe, coisas sem graça a boiar na nossa vida. Não me lembro de ser de outra forma, a receita de sucesso era esta. Em dias de festa a receita era recheada com um xarope de álcool que começava com um gin cortado com limão; depois um vinho encorpado - tinto, sempre tinto – e, para finalizar numa apoteose de gestos que me envergonham até hoje, um copo de whisky, liso, sem água, sem gelo. Um primor. Este é um dos lados, um dos aspectos da maternidade que me deu chão e sustentou a infância. Há outro. Porque a minha mãe, como todas as outras mães, é um bicho universal. Tem segredos só dela. Como compor o cabelo e nunca, por nunca, ficar despenteada, perder a compostura, deixar a ira ganhar corpo no corpo dela, tão bem escondido numa roupa que é, também, o reflexo da ideia que ela tem de si própria. Ela se acha, como dizem os brasileiros. Mas há muito mais sobre a minha mãe... muito mais... porém todo o seu brilho e genialidade se centram neste excesso de generosidade para com os terceiros. Nessa sua capacidade para ouvir. Ouvir os outros. Não para nos ouvir, a mim ou à minha irmã. Não falo do meu pai. Nunca falo do meu pai. Não vale a pena. Mas a minha mãe?

(Muda o tom de voz)


Tetas para todos! Venham, venham ver o leite milagroso da senhora e, por favor, ao saírem, façam o favor de ignorar a filha gorda e deixem uma palavra no livro de honra.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos


Poderosa


Ela
(Uma mulher na cozinha, uma cozinha sofisticada. A televisão está ligada, a janela está aberta. Há luz do dia. Será de tarde. Ouve-se o barulho de uma faca a cortar legumes)

É reconfortante. Fazer sopa. São um conjunto de passos mecânicos. As batatas. As cenouras. As cebolas. A abóbora. No fim, se for caso disso, os espinafres. Uma lata de grão de origem francesa. Uma mão cheio de massa em forma de cotovelo. Uma pitada de sal. Ponho noz moscada. Não porque goste de noz moscada, atenção; mas apenas porque a minha mãe utiliza noz moscada em tudo o que faz e eu não a posso desiludir, pois não? Pois não.

(Faz uma pausa)

Está calor. Calor em demasia para fazer sopa. Mesmo uma sopa simples, sem rodelas de chouriço, arroz, massa, couve lombarda. É reconfortante fazer listas de alimentos. Listas de compras. Listas de actividades para a semana. Listas de prendas de natal. Listas. Podia fazer uma lista de emoções. Podia. Podia. Mas não vamos por aí. Isto vai ferver. Vamos fazer... bolos ou bolachinhas de azeite. Ainda é cedo.

(Começa à procura de uma receita nos livros. Para chegar à prateleira utiliza um banco e, já em cima do banco, olha lá para fora através da janela)


Não tenho talento para isto. Para apreciar a paisagem lá fora, para me reconfortar com as coisas do mundo. Será bom viver lá fora? Há quanto tempo é que não me atrevo a descer à rua? A sentir o sol? As pessoas a passarem por mim? Tenho algum receio das pessoas. Desde pequena. Em casa da minha avó havia umas arcas de madeira onde me enfiava para fugir aos outros. E sempre houve esta distinção: eu e os outros. Nunca fui uma doadora de sangue. Nunca fiz nada pelos outros. Aprendi isso com a minha mãe, claro. A minha mãe é a grande...

(Procura a palavra e, por fim, suspira)


... fábrica... não, a grande porca leiteira, fornecedora de leite a todos, aos inválidos, infelizes, ausentes, estrangeiros, deficientes emocionais. Qualquer ser humano exterior ao núcleo da minha mãe é contemplado pela sua atenção desmesurada, pela sua bondade, ela que é pródiga em bons conselhos, ideias e esquemas de sobrevivência. Ela que se droga com anti-depressivas desde que me lembro – pequenas caixinhas de cartão com letras a vermelho na mesa de cabeceira.

(Muda de tom de voz e teatral diz em tom de ameaçador)


Não mexas aí, nunca mexas nos meus comprimidos.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

o cristiano ronaldo que há por aqui

- Mãe, quando eu for um craque da bola, tu és a minha manager. Vai ser muito giro, quando me perguntarem alguma coisa eu vou dizer: têm de falar com a minha mãe. Como hoje. Fica tudo igual.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Lucrécia em Santarém

A senhora com os olhos azuis luminosos sentou-se mesmo à minha frente e sorriu. Sorri-lhe de volta e houve uma pausa. Era o meio da tarde, ainda não tinha provada os celeste, os doces da região, e senti-me numa enorme paz dentro dos olhos da senhora que se disse chamar Lucrécia. Quando cheguei a Lisboa chovia muito. Foi um dia bom.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Às vezes um cheiro



Eu até podia ter seguido sem ver, ter ido por outro lado, o corpo a desviar-se, os olhos no chão, o lambril do passeio e o alcatrão incerto da estrada, o ruído dos automóveis a fugir e eu, cuidadoso, a atravessar a rua, a perder a oportunidade. Seguiria sem novidades, uma repetição de gestos que garantiriam o exercício de uma pretensa vida. Calcorrear a rua até ao número 87, subir ao terceiro andar, ocupar a minha secretária, abrir o computador, atender o telefone, tomar nota, registar o correio, responder e anuir. Sobretudo, anuir. Regressaria depois à rua para o almoço, um croquete de berbigão, um brigadeiro pecaminoso coberto de pepitas delicadas de chocolate, trincas pequenas para fazer durar. Por capricho. A voz do médico a dizer

Tem de controlar o colestrol. Evite os fritos.

O sem abrigo não me olhou, não parou, não falou sequer. Limitou-se a avançar pelo passeio, lenta e penosamente, e eu senti de imediato o cheiro, um rasto poderoso, inesperado. Um toque de almíscar. Um vento forte de madeira de ébano. Foi uma tentação segui-lo, curvado, escondido nas roupas escuras. Estava nisto, na perseguição do cheiro, quando o sem abrigo, por fim, estacou e olhou para trás; a percepção de não estar sozinho naqueles passos. E foi nessa altura que realmente vislumbrei a hipótese de fuga, o tal atravessar a estrada, evitar os carros na avenida, uma buzina a avisar, um rosto na janela a insultar-me

Vê por onde andas, palhaço.

Aguentei o olhar baço, a hesitação do corpo, os botões mal abotoados do casaco de inverno. Fiquei preso no cheiro. Não tenho vergonha de o dizer. Terra fresca, um avinagrado ligeiro. Uma cápsula de odor encheu-me os pulmões. Cerrei os olhos e aspirei com força. O sem abrigo manteve-se. Uma pose fora do contexto. Um retrato dos dois na rua seria, calculo, um momento raro na azáfama da cidade. Fora de tudo, de mim e de ele e da vida. Na montra, perto de mim, mesmo aqui ao lado, pressenti um olhar incrédulo. Abri os olhos e mantive-os nos dele. Lentamente, a mão rugosa, velha, castanha, deslizou para o bolso do sobretudo. Estendeu-ma com cuidado e, nesse movimento em direcção a mim, a mão abriu-se e vi uma quantidade enorme de papéis brancos, cortados fininhos, como uma massa.

São da perfumaria. Trazem perfume. É bom para tomar banho.

Ficámos os dois a olhar aqueles tesouros de olfacto no mar fechado da mão. Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Ouvi a voz do meu filho mais velho

Já passou, já passou.

O sem abrigo recolheu a mão. Hesitou. Avançou para mim e entregou-me os papelinhos da perfumaria, o mostruário de cheiros que me fizeram, por fim, acreditar na tua partida. Agradeci a oferta com um gesto de cabeça e o homem afastou-se, por fim, com a dignidade de um gesto grandioso, com a superioridade de um sofrimento menor que o meu. Na rua, em pleno Porto, a ver as obras e o metropolitano a passar à superfície, o rio que se adivinha, cheirei o fim do meu mundo. Nunca mais serei feliz. Não porque não queira. Porque não posso. Porque as tirinhas de papel que guardam a tua essência se vão perder com o tempo e eu com elas. É uma decisão esta que tomo aqui. Hoje não volto para casa. Hoje vou ficar na rua. Amanhã roubarei a alguém a comida que afastará a fome. Depois de amanhã vestirei um casaco castanho demasiado grande. Para o mês que vem já não saberei quem sou. Daqui a um ano o sem abrigo sou eu. Não é culpa tua, não penses. É apenas uma opção. Entre estar na vida sem ti e estar na rua, atirado à descrença de todos os princípios civilizacionais, prefiro aguardar a caridade da menina da perfumaria que, quem sabe?, um dia me oferecerá papelinhos de cheiro para afastar todo o mal que se acumula em mim. Nesse dia sorrirei. E só nesse dia. Diz aos meus filhos que o pai se perdeu. Manda dizer uma missa por mim. Não penses sequer em voltar. Não estou à tua espera.

domingo, 19 de outubro de 2008

calorias felizes

Vamos sair agora para comer gelados. Aqui do outro lado da rua. Um de chocolate. Outro de canela, outro de nata e um de caipirinha. Serei eu a precisar de álcool? Calorias felizes apesar da falência do corpo. Digo eu.

sábado, 18 de outubro de 2008

os amigos

Os amigos são o melhor do mundo.
Dão abraços.
Mandam mensagens.
Gostam de nós.

Isso deveria bastar, não é?

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Decisões a meio da tarde

Não subir o tom de voz. Não suspirar. Não me queixar. Não disfarçar a dor. Pedir ajuda. Evitar fazer quatro coisas ao mesmo tempo. Não gerir o tempo dos outros na medida do meu. Não controlar nada nem ninguém, as coisas aparecem feitas na mesma. Ter tempo para não fazer nada. Estar apenas. A vegetar. Ser um bróculo por momentos, ser um molho de bróculos e curtir a minha dimensão esverdeada. Não fazer planos. Esquecer-me das horas. Chegar atrasada como todos os portugueses. Culpar alguém que não eu mesma. Deixar cair a bitola de excelência que inventei que inventaram para eu alcançar. Mandar tudo às urtigas. Prolongar os abraços com o meu marido pela simples necessidade de ser abraçada. Ir ao cabeleireiro ler revistas sobre o Cristiano Ronaldo e saber tudo sobre a vida de José Castelo Branco. Deixar de ter um blog diário. Aceitar com generosidade o excesso de advérbios de modo e duplas negativas, há coisas contra as quais não vale a pena combater. Ignorar as segundas-feiras. Dar os relógios todos. Nunca mais pagar impostos. Fazer viagens de 15 dias a cada três meses. Dizer que não. Dizer que agora não posso. Deixar de pensar na falência do corpo, na pele seca, nas gorduras, nas coisas óbvias dessa doença degenerativa que é vida. Não ir ao dentista. Não tomar comprimidos. Acreditar em algo melhor todos os dias. Não dizer sempre as mesmas coisas: tira os pés daí, fecha a boca enquanto comes, vai estudar, lava o aparelho, estou a falar não me interrompas, faço já, desculpa não comprei, sim, estou a ir. Chorar mais vezes. Publicar isto e depois pensar que sou apenas patética e, depois, isso não ter qualquer importância.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Me ligue vai

Então ela disse:

- Sim, porque eles precisam de mim na medida da minha conversa. Sou uma "talking" puta e, ainda por cima, barata, porque não cobro, não recebo flores, não me mandam chocolates. Estou aqui, disponível para falar, para ouvir, para aconselhar, para orientar. Para qualquer coisa que queriam menos para o exercício do amor.Ah, pois, porque talking puta é outra dimensão, nada de coisas físicas, que seria?, as palavras vão e vêm sem ciclos orgásmicos. Nada de coisas múltiplas e suadas. Minto, há o suor de os ouvir, os homens da minha vida, a dizerem coisas, a sentirem-se grandes na medida exacta das palavras que empregam. A vitimizarem-se uma primeira vez e depois várias, já que não contestam o rótulo e explicam, explicam à exaustão o que pretendem. E o que pretendem? Algo grandioso e altruísta, porque na verdade são todos muito bonzinhos, não é? Precisam que eu faça de receptor de discursos e eu aqui estou para os abraçar nas suas hesitações e infantilidades.

Depois de ter dito tudo isto de seguida, o telemóvel tocou e ela atendeu. Esteve 40 minutos ao telefone. A fazer de talking puta. Mais uma vez. Quando desligou pensou que deveria apurar se é possível transformar o seu número de telefone num número de valor acrescentado, sempre eram 60 cêntimos por minuto que encaixava. Isso sim, seria um negócio.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Aniversário



Cara Agustina,

Hoje vi o seu Martinho a rondar o Rijksmuseum em Amesterdão. Fazia-o com passos incertos e quase ridículos por via da chuva que nos deixava os pés molhados, uma tortura para evitar as poças. Martinho tinha aquele ar autoritário mas, talvez perceba isto, uma certa fragilidade que só a idade traz aos homens. Como lhe digo, rondou a fila de turistas com algum desprezo pelos americanos de panamá impermeável colorido que falavam alto e nesse registo nasalado que consegue ser tão inconveniente. A chuva não ajudava. Vi Martinho a colocar na máquina do raio x a sua gabardina bege - clássica, com aqueles cintos que me lembram os do roupão de casa de banho. A realpolitik do terror. Não acha? Martinho comprou o bilhete e atravessou as salas sem pressa, sem olhar para lado nenhum. Eu, na esperança que ele parasse junto do quadro de Catrina Hoogsaet, uma vontade egoísta, só minha.
Rembrandt pintou Catrina quando ambos tinham 50 anos, no ano de 1657, um ano depois de ter declarado falência e ter sido forçado a fechar o seu atelier. A história de Catrina é de uma imensa coragem: casa aos 19 anos para ficar viúva um ano depois. Aos 30 volta a casar, mas a sorte não está com ela. Em conflito com o marido, pede autorização à igreja para se separar. A igreja concorda temporariamente, promovendo a reconciliação. Catrina monta a sua casa, é banida da comunidade, e, até à morte do marido, mantém-se firme: nada de reconciliações. Aos 66 anos fica viúva e volta a casar.
Catrina pertence, hoje, a uma família escocesa, jóia de uma colecção privada. Está no Rijskmuseum de empréstimo. Por vaidade do coleccionador, não duvido.
Segui Martinho com alguma irritação pela sua indiferença. Talvez não saiba nada de Catrina e, só isso, me entristece.
Quando chegámos, por fim, à sala da Ronda da Noite, Martinho seguiu em frente até ao cordão, sem pedir com licença, sem se ralar com a multidão e eu fiquei presa nos salamaleques do costume. Martinho fixou-se no quadro e ali ficou vinte minutos, contados por mim. Não sei o que me comoveu mais. Se ele ali sozinho, a imaginar-se com cinco, sete anos, a vestir a roupa da avó para ser como a pequena Saskia, a luminosa e poderosa criança que carrega a caça pequena à cintura; se a luz que vinha da mão de Rembrandt. Escolho Martinho e, por isso, querida Agustina, a vantagem e o ganho é tudo seu. Daqui, do frio de Amesterdão, a saúdo.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

E ainda


2.
Pensa nisso. Como um pedido ou uma ordem. Tu desse lado. Eu deste. Tu a fazer de conta que sou eu e a dizer que a sala do museu era quadrada, perfeita, sabendo que eu correria para a outra frase, um quadrado não é perfeito. Não me lembro da criança, nem do Rembrandt, desculpa. Lembro-me do meu corpo em frente a um espelho e do teu sexo sossegado, em contemplação infantil do meu. Entre nós o sexo não teve outra coisa senão isso, a contemplação e o choro. Nunca tivemos sexo, claro, só o toque e a língua dentro um do outro, como um pedido, uma tortura. A tua verdade não suporta a ideia do meu corpo tão pequeno, tão sem jeito e depois, ao contrário do que dizes, eu só acredito na mentira e na mentira de Deus. Sim, porque na sua imensa sabedoria, Ele dá-nos a hipótese da verdade ao contrário e isso traduz-se na mentira. A mentira do sexo, da tua língua, da apreciação teórica sobre o Rembrandt (eu gosto mais do Turner, desculpa outra vez). O que me alegra é pensar que sentes o meu cheiro à distância, cheiro a nuvens, disseste, e que continuas a enganar-te com a ideia de verdade. Sinto quase uma comoção quando te referes às imagens como verdadeiras, aos filmes. Nunca aos livros, porque esses metem medo, não é? Não acredito nas imagens, nem nos santos e talvez nem sequer Nele. Faço a apologia da ilusão, como num grande cenário, barroco, sublime, em tudo o que parece não é, deliberadamente, apenas uma mas mil coisas. Vou obrigar-te a contar a história do princípio, porque todas têm um princípio e tu não podes reduzir-me a um papel que tu interpretas (que mal que o interpretas, meu amor). Pensa nisto e recomeça.

há tanto tempo



Ela sou eu. Sou eu que digo.
Este não é o meu corpo. A verdade é essa. Eu sei que tudo começou em Amsterdão. Eu sei que foi face ao Rembrandt, com o rosto da criança a perder-se na sombra. Eu sei que tu também sabes. A sala do museu era quadrada, perfeita. É absurdo dizer-se de um quadrado que é perfeito. Foi o que tu disseste: o equilíbrio geométrico traduz a materialização da própria ideia de perfeição. De verdade. Porque Deus é geómetra. Eu sei. Mas foi face ao Rembrandt, fixando o olhar da criança a perder-se na sombra, que eu te perguntei se me querias fotografar como sou, ou se me querias fotografar para consumar uma ideia de mim de que eu poderia ser, não o corpo, mas o instrumento. Pensas demais, disseste. Quero o teu corpo, disseste. Quero a imagem do teu corpo, ouvi-te dizer. Mas o meu corpo não é a imagem do meu corpo. Quero os dois. Queres os dois. Não te dou tanto. Se me amares mais do que eu te amo, dás-me tudo isso e será sempre pouco. Repara no Rembrandt. Que importância tem a criança se está a desvanecer-se na penumbra? Se isto fosse um filme, na imagem seguinte já não estaria lá. Não, meu amor. Estaria a verdade da sua ausência. A ausência não pode estar relacionada com a verdade. Pode sim, a ausência é a própria encarnação de Deus e Deus é sempre verdade, toda a verdade. Este não é o meu corpo. Esta pose, as pernas abertas como um gafanhoto, a luz crua sobre as nádegas, o traço de sombra que começa milímetros antes da boca do meu sexo, o braço esquerdo paralelo ao tronco, a mão virada para cima, a outra mão já fora do enquadramento, o olho direito a brilhar sobre os cabelos desarranjados, nada disso sou eu, nada pode ser atribuído à decisão de Deus nos massacrar com a sua ausência. O olho direito e o sexo na penumbra podem ser dois vértices de um losango que se desenha já fora da imagem, afastando de nós o peso e a culpa da perfeição. Mesmo se é verdade que todos os quadrados são losangos. Acontece que nem todos os losangos são quadrados, meu anjo. Apesar de tudo, Deus aceita dar-nos algumas figuras de apaziguamento. Pensa nisso.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O poema do Joãozinho

É tão bom comer pizza
E eu odeio ser à baliza

É tão bom ter amigos
Que nunca comem figos

É tão bom ser inconveniente
Ao careca dar um pente

É tão bom ser João
E ter oportunidade de ir ao Japão

É tão bom brincar
E no escorrega escorregar

domingo, 12 de outubro de 2008

O clássico by Marco Paulo para os menos informados

Maravilhoso coração, maravilhoso
meu companheiro nos caminhos desta vida
ambos sofremos muitas horas de tristeza
mas partilhámos os momentos de alegria

Maravilhoso coração, maravilhoso
eu te agradeço a amizade e a companhia
tu és a amigo quando há dor
és confidente no amor
quero dizer-te que sem ti não existia

Maravilhoso coração, maravilhoso
quantas loucuras e aventuras repartimos
recordações inesquecíveis nos ficaram
tantos amores e paixões que nós sentimos

Maravilhoso coração, maravilhoso
sou tão feliz quando te sinto a palpitar
bendita a vida que me dás
e quando eu te peço mais
ficas comigo, tu não sabes recusar

Maravilhoso coração, maravilhoso
não deixes nunca de sonhar é um pedido
não deixes nunca de sentir as emoções
as sensação que nós os dois temos vivido

Maravilhoso coração, maravilhoso
tu és a chama que se aninha no meu peito
para que sempre exista amor
para leva-lo onde eu for
eu te agradeço todo o bem que me tens feito

sábado, 11 de outubro de 2008

O meu irmão

O meu irmão fez anos ontem. O meu irmão tem uns tiques e expressões específicas. Quando quer interpelar alguém diz: "Olha!" Remata as conversas com: "Mesmo à séria!" e quando se entusiasma lá sai um "é um espectáculo!". Nós que o amamos gozamos imenso com estas manias. Ontem pela madrugada viu-se rodeado de mulheres a cantar "coração maravilhoso, coração..." Um clássico tuga para acabar o aniversário em beleza. O meu irmão foi abanando a cabeça com alguma incredulidade. No fim, estava feliz. E nós por ele.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

entrevista na net

Estou com excesso de coisas, com cansaço, sem ideias.

Para me lerem, deixo-vos uma pista

http://www.portaldaliteratura.com

Perdoem a preguiça.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

estrela do mar


O meu filho mais novo e eu fizemos de estrela do mar no fundo da minha cama.
Foi maravilhoso.
A casa estava em silêncio e éramos só os dois no mar da casa a ser estrelas brilhantes e alegres. No fim, cansado de ser estrela do mar, o miúdo soltou uma gargalhada e disse:

- és a maior.

E eu senti-me ainda mais estrela do mar.



(foto de maria joão rodrigues)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

decisão pela manhã

Havia ali uma sombra, logo no princípio da manhã. Uma espécie de aperto próximo da angústia, um crescendo de coisa que podia ser terrífica. Respirou fundo.
Depois decidiu que não seria nada e levantou-se da cama, pronta para mais um dia.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

a pedido do tio

At last
My love has come along
My lonely days are over
And life is like a lovely song
At last
The skies above are blue
My hearts wrapped up in clover
Ever since the night I looked at you

I found a dream that I could speak to
A dream to call my own
I found a thrill to press my cheek to
A thrill like I have never known
Oh when you smile, when you smile at me
Thats how the spell was cast
And now here we are in heaven
I found my love at last

I found a dream that I could speak to
A dream to call my own
I found a thrill to press my cheek to
A thrill like I have never known
Oh when you smile, when you smile
Thats how the spell was cast
And now here we are in heaven
I found my love at last

(Joni Mitchell)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

aula de pilates

Contrair o transverso como se fosse um cinto natural. Os ombros estão afastados das orelhas e a cabeça está suspensa, como se um fio a puxasse. Respiramos devagar. Colocamos a coluna numa posição neutra. Movimentamos os ossos da bacia como se fosse uma panela com água e encontramos o ponto de equilíbrio. Sem esforçar nada prosseguimos. Inspirar. Expirar. Se doer paramos, o exercício está mal feito. Se for preciso descansamos. No fim repetimos tudo outra vez em dez ciclos respiratórios.

domingo, 5 de outubro de 2008

domingo

The Folks Who Live on the Hill

Some day we'll build a home on a hilltop high, you and I,
Shiny and new, a cottage that two can fill.
And we'll be pleased to be called
"The folks who live on the hill."

Some day we may be adding a thing or two, a wing or two,
We will make changes as any family will,
But we will always be called
"The folks who live on the hill."

Our verandah will command a view of meadows green,
The sort of view that seems to want to be seen.
And when the kids grow up and leave us,
We'll sit and look at that same old view,
Just we two, Darby and Joan who used to be Jack and Jill,
The folks who like to be called
What they have always been called
"The folks who live on the hill."


(letra: Oscar Hammerstein II música: Jerome Kern)
(c)1937

sábado, 4 de outubro de 2008

Hoje pela noite


Hoje pela noite Carlos do Carmo encheu-me de tristeza e de alegria, fez-me rir e chorar, embalada pelos fados de uma vida. Foi no Casino Estoril. Um espectáculo sem fim. Como a voz de um cantor que é um poeta por cantar assim.
Deus o abençoe.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Fora de tempo

Quando cheguei à escola, o miúdo tinha um gorro enfiado na cabeça e o casaco apertado até acima. Disse-lhe:

- Parece que vais para o Alasca.

Ele respondeu, infeliz:

- Eu estou no Alasca.

O miúdo tem uma teoria que reza assim: de cinco em cinco meses está doente. Nunca falha. Até hoje em que a doença veio fora do tempo.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

o homem do helicóptero

O homem estava junto ao elevador. Todo ele anunciava uma postura empresarial. Certeira. Confiante.O fato seria italiano, a gravata de marca, os botões de punho, embora discretos, eram de ouro. O homem sorriu ligeiramente e disse que iria até ao último andar, apanhar o helicóptero. Assim. Tal e qual. Houve um silêncio algo constrangedor, o elevador apitou, a porta abriu-se e o homem acenou com a cabeça em sinal de despedida. Parecia um filme. Era um filme.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

estamos próximos de nos afogar

Há uma mulher agarrada à rede das obras a gritar. Não se percebe o que diz, mas berra como um animal em desespero. Há sacos com lixo caídos no chão. São da mulher que grita. Nas obras os homens fingem não ver. As mãos da mulher agarram a rede e abanam-na com força, a maior força que tem. De repente acalma-se e diz

Estamos próximos de nos afogar.


E eu acredito nela.