quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

antes do fim

Na Austrália já estão em 2009, já contaram as 12 badaladas e comeram o que os australianos costumam comer nestas coisas das festas, não faço ideia o que seja.
Logo, o Sebastião vestirá uma camisa e um colete novo que comprou com as suas poupanças. O Micas vestirá uma versão cool qualquer que inventará à última da hora, deixando os atacadores dos ténis por apertar. O meu marido desfilará no seu melhor fato, camisa branca, botões de punho. Jantaremos com amigos e família e teremos as doze passas na mão, à hora certa, para brindar com champagne.

Os doze desejos:

Ter saúde
Conseguir alguma paz
Sentir alegria
Viver em família
Estar com os amigos
Não stressar
Partilhar
Viajar
Sonhar
Ter algum dinheiro
Ter tempo para não fazer nada
Ser surpreendido pela positiva

O resto, seja o que for, será igualmente bem recebido se não for mau ou causador de infelicidade. Boas entradas, que como se sabe, é uma forma sexy de ver a vida.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

ao telefone

O Zé Luís riu-se, um riso pequeno, e depois disse:

- Gosto desta coisa de desejar boas entradas, é sexy.

Rimos os dois e falámos de textos e de prazos, coisas terríveis a anunciar o trabalho que se adivinha em 2009, no fim do telefonema, ele disse:

- Boas entradas, miúda.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Crónica: o mito do eterno retorno

. Pois é, vou candidatar-me com grande sacrifício pessoal. Sim, sim, não haja dúvida que a noção de serviço público implica uma nobreza de outros tempos. Felizmente ando na política deste jovem, vi muito, sei muito. Nem sempre fui um personagem consensual, é bem verdade, mas os portugueses sabem que estou cá para o melhor e, sobretudo, para o pior.
Nunca tive oportunidade de demonstrar a minha visão para o país em tempos de vacas gordas. Reconheço que foi mais fácil com os primeiros dinheiros da união europeia, mas onde isso já vai? Eu tenho ideias concretas para tornar este país mais, mais... bom, para tornar o país mais. Até era um bom slogan, não concordam?
Conheço bem os dossiers, seja o que for que queiram perguntar, façam o favor, tenho uma palavra a dizer. Sei de urbanismo, de cultura, de habitação social, de economia e, acima de tudo, sei como ninguém navegar nos meandros da política. Não é para todos, como sabem. É difícil. Vejam o caso da Câmara Municipal de Lisboa. É uma máquina complexa, intrincada, quase odiosa, posso dizer. Mas alguém tem de assumir esta dor de cabeça, alguém tem de pensar na cidade.
O túnel do Marques de Pombal, que eu mandei fazer - convém sempre sublinhar - é um caso paradigmático e reflecte a minha visão. É verdade que nem tudo correu pelo melhor, há questões e dúvidas, opções mal tomadas, equipas duvidosas. Eu sou humano, sou falível. O que posso prometer é ser mais, mais... Ser mais também era um bom slogan, não acham?
Ainda sou novo, sou de cá, sou lisboeta e português e ainda um cidadão do mundo (e nada de dizer que estou a citar o Dr. Soares, tenham dó, uma frase tão boa é de todos, não é exclusivo dos socialistas), apesar de ter horror a viajar de avião. Fui deputado, deputado europeu, secretário de estado, primeiro ministro... Por acidente, é verdade, mas fui primeiro ministro! Um dia, quem sabe?, seguirei os passos de Cavaco Silva e terei então herdado em pleno o legado político de Sá Carneiro. Serei mais, muito mais do que os meus inimigos me vaticinaram; muito mais do que os amigos sonharam. Terei o meu lugar na História de Portugal e isso, meus senhores, só a vós devo, caros eleitores. Bem hajam.

(crónica publicada no Semanário Económico de 26 de Dezembro de 2008)

studio 60 live on the sunset stip






Uma noite inteira a ver Harriet e Matt a lutar contra a ideia de serem um do outro; Danny a sobreviver à droga, Jordan a ser poderosa e maravilhosa como só ela; Cal a aceitar tudo com alguma calma; e todos os outros. Uma caixa inteira, 23 episódios extraordinários que farão o enorme favor de encher as próximas noites com riso e comoção de uma forma inteligente. Há quem veja a TVI. Não é o nosso caso.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Imaginar

Imagina que na luz branca da noite passas pelo jardim, ganhas coragem e atravessas o viaduto. Imagina que eu corro os metros que nos separam, fico perto do teu corpo, a balançar, e digo boa noite. Tens medo?

sábado, 27 de dezembro de 2008

Cata com dias de atraso

Caro Manuel
Escrevo-lhe da praça do Muro das Lamentações em Jerusalém. Perdoe-me. Não estarei para a Consoada. Agradeço-lhe o convite, sabe que sim, sei que não se esquece de mim. Devo ser uma espécie de sem-abrigo afectivo na sua vida, condição altamente recomendável para um viúvo e, sabendo que não desdenho as fatias paridas e o bacalhau com couves da nossa Cecília, a verdade é que fugi dessa coisa natalícia, artificial e luzente que não compreendo. Ou já não compreendo.
Tempos houve que saía de casa para ver as luzes na avenida, espreitar as decorações, o cheiro do frio de Dezembro, a conversa das prendas e toda a organização das festas. Fazia o presépio no primeiro domingo de Dezembro. Fazia-o com cuidado, comprava musgo na florista, desvendava cada figura guardada em papel de jornal, conseguia algumas diferenças na composição de ano para ano, mas coisa pouca.
Não tenho força para nada disso, descer à arrecadação, procurar os enfeites de natal e viver esse momento, julgo ter perdido o sentido da vida, de estar e ser com os outros. Respiro apenas, meu amigo. Respiro e o coração bate sem emoção. Isto não é vida. É outra coisa. Quando comecei a ver o carro carregado com as iluminações, as gruas e os homens a preparem o natal, percebi que não conseguiria ficar indiferente.
Como uma espécie de tortura, optei por viajar e escolhi, de todos os lugares do mundo, imagine, Israel. E agora aqui estou no lugar fundador de tudo, na estranheza desse princípio que está no nosso código genético, no nosso imaginário.
Está frio, sabe, que entra nos ossos. Talvez seja apenas a velhice. Digo-lhe que isto do frio é muito limitador. Ando pelas ruas a esfregar as mãos. Fiz o percurso dos tristes, desses turistas que surgem com guias a debitar informação, guarda-chuvas erguidos como uma placa sinalizadora de presença, americanos lamentavelmente ruidosos, nipónicos sem expressão, grupos de peregrinos italianos que murmuram orações enquanto fazem a Via Sacra.
Vou, sem destino, como uma sombra na perseguição dos outros. Tenho no quarto de hotel um guia, o melhor, o American Express; páginas repletas de informações sucintas, apenas o essencial. Ainda não o abri. Penso que não quero saber. A história, as religiões monoteístas, os monumentos. Nada disso me interessa.
Ando pelas ruas há dois dias. A velha cidade de Jerusalém é maior do que a China. Parece-me diferente todos os dias, como um mar atormentado que se transfigura num espelho de acalmia para depois voltar a uma certa fúria. Do bairro judeu ao árabe, a fronteira desenha-se na pedra, nos cheiros, na arrumação que se opõe ao caos de uma espécie de souk. Fascina-me esta divisão. A ordem e limpeza dos judeus são admiráveis e, talvez não me faça compreender como gostaria, caro Manuel, mas a verdade é que é um pouco assustador.
Passei há pouco o detector de metais para chegar aqui, ao Muro das Lamentações. Descobri ontem que estou contra a minha educação, as minhas raízes. Não sinto qualquer comoção no Santo Sepulcro. Devo ser um mau cristão. Sempre suspeitei ser um pobre cristão, indigno e fatalmente obtuso para os mistérios maiores. Aqui, no Muro, sento-me numa cadeira de plástico, no lado reservado aos homens, e consigo ouvir as mulheres do outro lado, mulheres que de pé se encostam ao muro e rezam alto, como uma cantilena, um choro triste e repetido. Deus abandonou-nos. Estamos sozinhos. Ele não está no muro, na igreja, na mesquita. Escapou-nos. Há quanto tempo? Desde sempre, parece-me.
Não o quero ofender, Manuel, sei da sua devoção. Perdoe este seu amigo. Li algures que nada mata mais do que a solidão, sobretudo se estamos mesmo sozinhos. Talvez esteja aquém da salvação, do entendimento, de uma ideia melhor. Terá Deus um propósito específico para mim? Sim, sei que devo acreditar na Sua bondade. Um dia talvez O reencontre.
Decidi agora que não lhe mandarei esta carta, meu amigo, vou deixá-la numa fresta do Muro das Lamentações, numa pequena reentrância entre pedras de outra memória, a sua carta e milhares de orações, pedidos, agradecimentos que só consigo imaginar com enorme esforço.
Desejo-lhe um Santo Natal.
Um abraço,
Eduardo

(conto publicado no suplemento de natal do jornal do Fundão)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Crónica

São milhares de páginas. São quatro anos de coisas acumuladas num julgamento em que ninguém acredita. A tal cegueira da justiça. Olhe que eu sei do que falo. Sou um funcionário menor do tribunal, mas sei muito. Não vai acontecer nada de especial, posso garantir. Tanta expectativa e investigação e depois a montanha pariu um rato? Claro, claro, somos um país de brandos costumes, não é o que se diz? Esta coisa de terem prendido um banqueiro é só fogo de vista, sabe-se lá o que escondem com isto. Não, eu não acredito na justiça.
Faço o meu trabalho, transcrições atrás de transcrições. Consigo detectar imprecisões com mais justiça que os advogados ou procuradores. Tenho o ouvido treinado. Só pelo tom de voz consigo saber se uma pessoa é culpada, se está a mentir, se esconde alguma coisa. Consigo detectar o choro segundos antes dele acontecer. Entre um polígrafo e as minhas capacidades, confio em mim. Claro que não desvendo nada disto, para quê? A quem? A justiça neste país sofre de um excesso de hierarquia e de funcionalismo público no pior sentido. Vou andando por aqui e colecciono coisas. Um dia escreverei um livro. Será um escândalo ou talvez não. Uma coisa é certa, terá sangue, sexo e corrupção em quantidades tais que fará as delícias dos mais sedentos. Aquelas séries de televisão sobre os meandros da justiça estão noutra dimensão, não reflectem nada do que aqui se passa. Veja o caso Casa Pia, um caso que eu conheço bem. Não dava uma série de televisão, dava várias, mas simplificar tudo para o espectador seria uma tarefa impossível. Ninguém imagina. Quando tudo estiver terminado, acredito que não fará diferença. Todos os dias vejo casos novos de violência sexual. Chegam a tribunal como pães quentes acabados de tirar do forno. Nós já gozámos, é a dose diária a que temos direito. Por mais que se imagine, nunca se sabe exactamente o que é uma criança vítima de abusos até a ouvir falar sobre as suas experiências. Eu faço transcrições desses depoimentos. Tenho chorado muito. Já cheguei a vomitar. Acreditar na justiça? Nem por isso.

(Crónica publicada no Semanário Económico de 20 de Dezembro de 2008)

domingo, 21 de dezembro de 2008

meg ryan

- Take me to bed or leave me forever

Meg Ryan dixit in Top Gun.

sábado, 20 de dezembro de 2008

ainda doente

O miúdo perguntou:

- Ficas comigo para sempre?

- Sim.

- Para sempre de sempre?

- Sim, para sempre de sempre.

- Ainda bem.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

aquela dor

- Como é que se chama aquela dor que se tem na cabeça quando não se tem razão?

- É a consciência.

diálogo da série animada Os substitutos no Disney Channel.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

ronda de natal

Sms, prendas, sacos, garrafas de vinho, idas ao supermercado, ajustes na decoração da mesa, musgo para o presépio, velas e pão. Let the games begin.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Huck

O miúdo adormeceu a ouvir as aventuras de Huckleberry Finn. O meu cansaço desfez-se na leitura, podia ler mais duas horas, sem interrupções. Ler alto implica esvaziar a cabeça de outra coisa que não a história. Preciso tanto disso.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Crónica

Deus combinou encontrar-se comigo às três da tarde na Brasileira, junto à estátua do Senhor Pessoa, esse que o Governo não pretende engrandecer com potencialidades nacionais. Quando cheguei já tinha um croissant com doce de ovo pela metade e uma meia de leite salpicada de migalhas. Não soube dizer se estava bem ou mal disposto. Cumprimentou-me com um aceno de cabeça e percebi que deveria sentar-me.
Ficámos em silêncio por instantes até que encolheu os ombros a incentivar-me. Deus tinha aberto o expediente para me ouvir, não me fiz por isso rogado e, sem culpa ou pudor, desfiei o rosário das minhas misérias.
Apresentei-lhe os factos: o funcionamento do banco, os favores que prestou e a quem ao longo dos anos, os investimentos e a fraca perspectiva de sobrevivência face ao panorama actual, os clientes a retirar contas, outros a telefonar com insistências e perguntas impossíveis de responder. Deus foi comendo e abanando a cabeça em gestos divinos, decerto, mas que não almejei decifrar. Bebericou a meia de leite que disparava na atmosfera do Chiado um cheiro enjoativo que me revoltava, no estômago, o conteúdo parco do almoço já esquecido. Por fim, Deus disse:

- Vais então recorrer às verbas do Estado?

- Não tenho outra hipótese. O Primeiro Ministro disponibilizou as verbas, é preciso aproveitar.

- Sócrates, não é?

- Sim. Lá fora, noutros países, está a suceder o mesmo. Tal e qual.

- Mas isso pouco te importa, não é verdade? Tens de te salvar.

- Gostaria.

Deus pareceu meditar nesta questão da salvação e eu fiquei mais uma vez calado. Por fim, disse-me a meia voz que ia ver o que podia fazer por mim e acenou em despedida. Apressei-me a partir, largando um “boa tarde” que me pareceu um pouco desnecessário, mas educado.
Reparei que junto à montra do “Paris em Lisboa” estava um outro administrador de banco privado e que a subir a rua Garrett um Jaguar deixava um presidente de conselho de administração de uma outra instituição bancária. Senti-me menos só.
Deus era um homem ocupado esta tarde.

(crónica publicada no Semanário Económico a 13 de Dezembro de 2008)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Justo agora

É Adriana Calcanhoto a cantar e eu a perceber que a paz não faz sentido nem tem hipótese. O amor não basta. É preciso drama e guerrilha, incompreensão e acusação. O ser humano é uma merda. Justo agora e sempre.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Hoje

O meu tio avô faria hoje anos. Tenho três fotografias dele no atelier, ele zela por mim enquanto constrói a maquete do jardim de Moura. As fotos são de 1936. Já ninguém se lembra desta história, talvez a minha mãe. Hoje seria o seu dia. Será sempre.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

coisas pequenas

Ethan Hawke dixit
“We always think that the best moments of our lives are going to be these dramatic things, but really, sometimes, a nice breakfast with a good friend is the most fun you’ll ever have.”

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Crónica

O homem teve um sonho. Não era um sonho como o de Barack Obama, do Nelson Mandela ou, para quem tem memória dessas coisas, do Martin Luther King. Nada disso. O sonho do homem era resolver o problema do Partido Social Democrata. Acordou com essa decisão tomada, era urgente, crucial, cumprir-se um plano para Portugal. Alguém teria de o fazer. O sonho dizia-lhe que era ele e só ele. Não se tratava de eliminar a Manuel Ferreira Leite ou o Luís Filipe Menezes - isso seria praticar um lógica simplex do Primeiro Ministro e o nosso homem não tinha nenhuma intenção de seguir essa linha de pensamento. O projecto era maior do isso: reabilitar o PSD, torná-lo uma força, uma potência geradora de ideias. Não com ideias sexy, como parecem querer vender no Partido Socialista, mas sim com ideias fortes, passíveis de construir um futuro melhor e mais feliz.
Na sua sala de paredes laranja, com um busto de Sá Carneiro e outras alusões ao universo do partido, o homem começou a escrever uma lista de potenciais candidatos. Ao fim de pouco tempo, desistiu e optou por enumerar as características carismáticas de um futuro líder. Aquilo que deveria procurar dentro do partido, junto dos militantes com e sem quotas pagas, qualquer um servia.
Na sua folha branca principiou a lista de qualidades que com alguma facilidade podemos imaginar. Não querendo um líder como Obama ou um personagem demasiado economicista (o episódio Manuela Ferreira Leite ainda o atormentava), o homem decidiu ser pragmático, sem deixar de ser crédulo. Um líder de oposição de jeito, com potencialidades para governar o país a médio-longo prazo. Escreveu meia dúzia de palavras, meditou, coçou a cabeça, hesitou e, por fim, num acto de derrota, abandonou a caneta e amarrotou a folha. Percebeu que o sonho tinha terminado. Estava perante o vazio. Levantou-se, passou pelo busto de Sá Carneiro, e teve vergonha. Seguiu caminho sem o olhar, como um menino de castigo na escola.

Crónica publicada no Semanário Económico dia 6 de Dezembro de 2008

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Covilhã

Vou hoje à Covilhã falar do livro, No Silêncio de Deus.
É um café literário organizado por Manuel Silva Ramos.
Vou cedo, regressarei tarde, muito tarde.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Alçada


Era um jantar da revista Máxima, há muito tempo. António Alçada ficou ao meu lado. Deu-me uma série de sorrisos tristes, várias histórias engraçadas e uma gargalhada genuína. Ao lembrar os pormenores, ficou-me a saudade.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Eu não sou o Mexia

A minha ficção
O António Mexia andava atrás de mim pela casa a gritar: “Acenda as luzes, acenda as luzes! Preciso que gaste o seu dinheiro, caramba. Preciso de facturar!” Eu, espantada perante o assédio do presidente da EDP, julgava-me segura no sossego do lar, mas o homem, com fato e gravata da moda em tons de roxo, corria atrás de mim sem se despentear. O meu coração pulava descompassado. As minhas mãos iam apagando as luzes do corredor. António Mexia, na perseguição, voltava a ligar tudo, focos e focos de luz como num palco. O homem estava quase a alcançar-me e eu gritava por socorro, apagava as luzes e fugia, fugia como quem foge da morte. O corredor não tinha fim, António Mexia aproximava-se com um computador debaixo do braço e berrava garantindo-me que tenho de aderir às facturas enviadas por email, que era imperativo gastar mas, em simultâneo, salvar o planeta, aderir ao contador bi-horário e ainda sorrir e votar no partido socialista. Tudo ao mesmo tempo como uma refeição de restos. Continuei a fugir e a pensar no Sócrates e na necessidade de investimento público, na pouca fé da Manuela Ferreira Leite na democracia, no Mia Couto a dizer que se o Obama fosse africano não era preto, era mulato. Várias coisas ao mesmo tempo, como é próprio dos pesadelos. Acordei com o coração aos pulos e vi, uma última vez, o bem vestido e comportado António Mexia, presidente da EDP, a cantar: “we got the whole world in our hands, we got...”
Dois dias depois, um psiquiatra amigo, a rir, disse-me que eram os sonhos próprios da crise. Perguntou-me quanto gasto em electricidade e se estava a pensar em poupar. Respondi de forma evasiva, ainda tinha a imagem do António Mexia a correr atrás de mim. O meu amigo, sábio e conhecedor dos pequenos dramas do cérebro humano, acrescentou com pesar que também há professores que sonham com a ministra da Educação e que precisam de muita medicação para sobreviver a tanta mudança, avaliações e outras tantas limpezas. Para me confortar, pensei: “O Mexia sempre é mais giro”.
Uma vez em casa comecei a ver a quantidade de luzes acesas: na sala, nos quartos, na cozinha e numa série de aparelhos que piscam luzes vermelhas, verdes ou azuis. Desatei a refilar com os meus filhos, tão desprendidos da realidade e do cenário de crise mundial. O pesadelo deve ter reaparecido no meu inconsciente (esse sim, a precisar de bastante iluminação) e dei comigo a ralhar: “Apaguem as luzes, eu não sou o António Mexia!”.

(crónica publicada na edição do Semanário Económico de 29 de Novembro de 2008)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

chuva chuva

Não se aguenta o frio, a chuva e o vento. Ligo ao meu marido:

- Se formos para Veneza vamos encontrar as maiores cheias de sempre.

- Não vamos para Veneza.

Sexta feira vamos para o desconhecido e eu não adivinho onde é.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

o miúdo doente

O miúdo encolhido no sofá:

- Mimo... sei o que é, mas não tenho!

Depois a gargalhada, apesar da dor de garganta, o ataque de tosse e outro de beijos.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

domingo à tarde

No sofá, enrolada na manta, vi quatro filmes pela tarde.
Fiz maçãs assadas. Vi a chuva lá fora.

domingo, 30 de novembro de 2008

bastidores

Entrámos pela rampa e chovia sem dó. Os miúdos apressados por espreitar tudo. Atrás do palco, em cima de cabos, junto a caixas indefinidas, viram os músicos subir as escadas e depois Carlos do Carmo chegou com a Judite. Os miúdos permaneceram em silêncio, respeitosos. Fugimos pela lateral, com os passes ao peito, e percorremos o pavilhão. O objectivo era encontrar um bom lugar. Aterrámos ao pé da regie, confiantes que os nossos passes seriam armas contra quem nos enxotasse. Ninguém o fez. Ouvimos o Carlos, a Carminho, o Camané, a Mariza, a Maria Belisarte, a Sinfonieta, o Bernardo Sassetti. Ouvimos o Homem na Cidade, o Carlos sentado com o neto Sebastião à viola. Duas horas e vinte de espectáculo. Vinte minutos antes do fim, o mais miúdo disse: Não aguento mais.
E dormiu no meu colo, indiferente às palmas, às canções.
No fim, regressámos aos bastidores e os miúdos, sinceros, disseram ao Carlos que não gostam de fado, mas que gostam dele.

sábado, 29 de novembro de 2008

modo silencioso

O casal bebeu a meia de leite e comeu a torrada. Ela leu a revista do Expresso. Ele leu o suplemento de economia. Não trocaram uma palavra.
Foi o momento alto do fim de semana prolongado.
Se tristeza...

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

então tu morrias

Então tu morrias e eu comprava um tecido vermelho pêssego para cobrir o sofá e afastar essa impressão do teu corpo. Seria uma libertação. Não penso nisso, sabes. A tua morte não me estimula a imaginação. São os espaços que me levam a estes pensamentos. Saber que enquanto estás, há coisas que não farei. Não por seres castrador, repara, apenas por ser incapaz de to propor. Prefiro o silêncio. Contigo é sempre melhor. Não penses que tenho medo de ti e da tua força, quando bates já esgotado pelo álcool, nem és muito eficaz. O meu corpo está tão habituado à força da tua mão que não a sente. É a minha maior vingança, se queres saber. O desprezo do meu corpo face ao peso da tua mão. E depois a fantasia de saber que, um dia, terei um sofá vermelho.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

o dentista e a assistente

dentista: vai sentir uma picadinha, sim?
paciente: hum...
assistente: pode bochechar
dentista: abra bem...
assistente: Dr?
dentista: aspiração...sente frio?
paciente: hum...
dentista: vamos fazer uma endo
assistente: grampo?
dentista: sim
assistente: abra bem a boca
dentista: não sente nada?
paciente: hum
dentista: preciso de ...
assistente: aqui
dentista: a que rotação está?
assistente: a 400. Quer 300?
dentista: sim e cones 40.
assistente: está bem?
paciente: (silêncio)
dentista: raio x...abra bem
paciente: haaaaaa

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Adeus



Vão matar o Batman/Bruce Wayne. O único herói passível de ser considerado herói, suficientemente atormentado para ser interessante e com uma indumentária nada gay. Não há justiça no mundo.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

para dentro

Buda está na montanha. Buda está na montanha.Buda está na montanha. Buda está na montanha.Buda está na montanha. Buda está na montanha.Buda está na montanha. Buda está na montanha.Buda está na montanha. Buda está na montanha.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Poema de António Gedeão

Rosa branca ao peito

Teu corpinho adolescente cheira a princípio do mundo.

Ainda está por soprar a brisa que há-de agitar a tua seara.

Ainda está por romper a seara que há-de rasgar o teu solo fecundo.

Ainda está por arrotear o solo que há-de sorver a água clara.

Ainda está por ascender a nuvem que há-de chover a tua chuva.

Ainda está por arder o sol que há-de evaporar a água da tua nuvem.



Mas tudo te espera desde o princípio do mundo:

a doce brisa, a verde seara, o solo fecundo.

Tudo te espera desde o princípio de tudo:

a água clara, a fofa nuvem, o sol agudo.



Tu sabes, tu sabes tudo.

Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo fecundo

que sabem tudo desde o princípio do mundo.

Tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo

que desde o princípio do mundo sabem tudo.

O teu cabelo sabe que há-de crescer

e que há-de ser louro.

As tuas lágrimas sabem que hão-de correr

nas horas de choro

Os teus peitos sabem que hão-de estremecer

no dia do riso.

O teu rosto sabe que há-de enrubescer

quando for preciso.



Quando te sentires perdida

fecha os olhos e sorri.

Não tenhas medo da Vida

que a Vida vive por si.

Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo fecundo

que sabem tudo desde o princípio do mundo.

tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo.

A tua inocência sabe tudo.

domingo, 23 de novembro de 2008

retrospectiva

Havia o sossego da casa, o sol a bater levemente na cortina, um certo sentido de paz e de silêncio bondoso para terminar a semana.
Ficámos assim duas horas, depois fomos ao lanche de aniversário do Gugas. Os domingos têm esse apetite de não se fazer, de não dizer.
Na sexta feira rumámos à Figueira da Foz para a primeira sessão pública da Academia Pedro Hispano. Vitorino e Janita cantaram e desafiaram os mais audazes a outras comidas depois das duas da manhã, num restaurante chamado Búzio que, consta, tem o melhor farnel daquelas paragens. O mar estava ali a vigiar-nos. A Inês riu-se e contou histórias. O Zé Francisco passeava a cigarrilha satisfeito. Lobo Antunes sorriu com aquela tristeza que só é dele e felicitou os músicos. O meu marido aventurou-se a um charuto.
No sábado lemos os jornais, andámos pela casa, embrulhámos prendas de natal. Na feira de arte em Lisboa encontrámos um fotógrafo amigo e um casal de excêntricos por serem artistas. Não havia lugar ao pensamento, fomos ver o 007 sem martinis batidos, sem Bond, James Bond, sem humor e sem invenções. Ao fim dos três primeiros minutos, estava pregada à cadeira e super cansada.
Agora, no fim do domingo, a máquina a lavar a roupa, o benfica a amanhar-se com o académica, o sebastião a rever o francês e o micas a tagarelar, falta apenas eliminar o que segunda feira trará sem piedade.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Guardador de jóias


Para o Elvis

Não consigo ver nada, só sinto os solavancos. Ficar com os olhos abertos faz-me muito medo, medo do escuro. Assim, tenho os olhos fechados, sentindo cada pára-arranca do carro, o meu suor na testa, a boca seca. Penso que não vou sobreviver a isto. Quando o carro parar de vez, o meu coração não irá aguentar e vai disparar, rápido, rasgando a pele do meu corpo, trespassando todos os meus órgãos, um coração aos pulos, a correr, desenfreado, sem dono. Vai ser assim: a porta da bagageira do carro abre-se e o meu corpo vai sofrer o choque de não sobreviver ao coração que se dispara como uma arma letal. Vou morrer antes que me matem. Agora, sempre que sinto o carro abrandar, penso. Sinto-me a pensar, oiço-me a pensar

É desta, eles vêm aí.

O bar tinha aquela luz de bar e a música não se identificava. Ela até disse que o lounge era como a antiga música de elevador. Eu não percebi bem o que é que isso quer dizer, mas fiquei calado, porque gostava de a ver dizer estas coisas, o cabelo nos ombros como cortinas de um palco, o azul dos olhos a brilhar debaixo do rimel preto, preto em excesso. Não havia nenhuma história ali. Eu sabia que nunca teria hipóteses de fazer nada com ela. Estava, digamos, a guardá-la. Não como guarda-costas, mas como um fiel depositário das jóias alheias, como aqueles senhores de cabelo branco nos bancos que nos levam, em secretismo, para a zona dos cofres e nos deitam um olhar cúmplice quando se retiram e dizem

Esteja à vontade.

Eu devia dinheiro ao dono da jóia. Quer dizer, eu devia dinheiro ao casino, à minha senhoria, aos meus pais, aos meus vizinhos do 3 C, à idiota da Clarinha, tão boazinha, que me sorria constantemente, como se fosse uma fotografia. Dever dinheiro é a minha especialidade. Há anos. É como fazer bolas de fumo com o cigarro. Comecei aos 13 e nunca mais consegui parar. Mesmo quando não jogo, perco dinheiro. Às vezes acho que basta respirar para dever dinheiro a alguém.
Seja como for, o chefe - o man, o tipo, o gajo, o big boss - tinha-me dito que não era preciso pagar já, bastava ir pagando, fazendo uns trabalhinhos. E foi então que comecei a fazer de motorista para levar a menina aqui e ali, um café, um cinema, um jantar, uma festa onde ela aparecia para o fazer sentir mais importante. Ela com o cabelo loiro, como seria de esperar. Ele bossal, como todos os outros do gang, umas figuras de banda desenhada, em roxo e verde, com rostos disformes, sem bondade nenhuma. A ausência do Bom nas personagens afligia a minha alma cristã, mas aguentava os trabalhos porque devia e quem deve sempre teme, não é?
Até as vozes me assustavam por falta de humanidade. Conseguia vê-los ao longe, sem piedade, a rir e a beber, às vezes olhando para mim como quem diz

Pobre desgraçado.

A opção vitimizante é preciosa. Descobri isso muito cedo, quase tão cedo quanto às argolas de fumo. Há que adoptar toda uma postura corporal que descai, que nos arrasta para os contornos menos simpáticos da depressão. Antes de falarmos já somos a expressão viva do desgosto, da incapacidade, do falhanço. Tudo isto se cultiva. Com tempo e afinco, como quem estuda um papel a cumprir, uma representação que vai durar a vida inteira. Não há esboços de risos e vitórias, momentos preciosos tipo anúncio de telemóvel onde – imagino agora – podia cair nos braços da loira e os lábios dela colarem-se nos meus

Segue o que sentes.

Seja como for, esta minha atitude de desgraçado foi o que me safou. Devo dinheiro, muito dinheiro, e podia ter morrido ali, no dia da 13ª colecta, quando os mafiosos me atiraram para o chão e o caixote do lixo rolou para cima das minhas calças deixando um rasto de tomate e esparguete, jornais e coisas amarelas por identificar. A minha total falta de vocação para o sucesso implicou um perdão implícito

Nem para matar serves.

Quando a loira me olhou e disse que ia à casa de banho, naquela noite, naquele bar, com aquela música, não suspeitei de nada, não emiti um som. Fiquei sentado a ver as luzes a mudar de azul para rosa, de amarelo para verde, os corpos a estenderem-se uns sobre os outros com o álcool a fazer de edredão à realidade. Quando dei por mim já tinham passado quatro ou cinco músicas daquelas que não começam, vão apenas mudando de repente. Olhei para os lados da casa de banho e ela nada. Eu não sou de tomar decisões, mas senti uma borboleta, vaga, pequenina, no estômago e quase que corri para a porta de vidro martelado

Estás aí?

Nada. Um silêncio no meio daquela música, daquele fumo de luzes. Entrei. No chão, perto do lavatório futurista, a minha jóia, a menina dele, do chefe, tinha as pernas abertas e um tiro na cabeça. O vestido branco estava rasgado e cheio de sangue, as tripas de fora. Fiquei a olhar para aquilo e sabem quando vimos a nossa vida desenrolar-se em frente aos nossos olhos? Pois foi mesmo assim, porque eu soube de imediato que não tinha hipótese nenhuma, que desta vez não valia a pena ter aquele ar

Pobre desgraçado

Aquele momento durou o que durou, o telemóvel dela tocou na mala de missangas cor-de-rosa e eu, estúpido, atendi. Antes de perceber exactamente o que me ia acontecer, obedeci. Fechei a porta da casa de banho e sentei-me à espera que eles chegassem. Não sei como é que tiraram o corpo dela do bar, nem reparei. Sei apenas que me ataram as mãos e os pés e me despejaram na bagageira do carro. Disseram-me

A tipa tinha um diamante no estômago, o maior diamante angolano dos últimos 20 anos. Só tinhas que olhar por ela.

Eu, sem saber, gaguejando, cumprindo o costume, dizendo o costume

Eu pago, eu prometo que pago.

Os risos deles ficaram lá fora e eu aqui na mala do carro com cheiro a gasolina. Ainda pensei que seria horrível ter de chafurdar no sangue para procurar um diamante. Mas não era nada comigo, pois não?

Quando a porta se abrir, já decidi, o meu coração vai-me matar. Vai ser lindo. Se eu soubesse que a tipa tinha um diamante na barriga, eu mesmo tinha procedido à cesariana.
Um diamante, o maior diamante do mundo. Francamente. Há coisas muito injustas.

(ilustrações de Rodrigo Prazeres Saias que tem um blogue activo muito bom)

ontem

Ontem o dia foi salvo pelo Carlos do Carmo.
Literalmente. Bem haja. Não me canso de o dizer.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

vertigo

Depois de uma hora a puxar molas e a apertar bolas na aula de pilates, almoço no Vertigo. Batata assada com salmão. A sala está vazia. Canta a Mariza e eu fico com lágrimas a rasar os olhos, a ameaçar. Contenho-me e depois penso que é só cansaço.
O cansaço é tudo.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Comi-o

Foi em simultâneo: Rodrigo apareceu no topo das escadas volantes, transportado abruptamente para o piso onde o irmão, Tomás e Sara o esperavam; o telemóvel tocou, no visor viu o nome de Lila, sentiu a garganta a secar, a secar como se fosse um deserto, o sexo murcho, a incapacidade total de reagir, mexer, pensar, confirmar ou desmentir a sua pulhice perante o mundo. Era um daqueles momentos em que um homem vê a sua morte, vê o segundo antes da morte. Sara sorriu estonteante durante um momento, depois, rápida, viu o olhar de Rodrigo, o telemóvel a piscar, aquela luz azulada, e o Tomás a perguntar:

Então maninho, estás feliz por nos ver? Feliz aniversário.

Sara, a que já viveu tudo, esmoreceu, as mãos cerradas nos bolsos da gabardine branca, uma pele a saltar junto à unha do polegar direito, um tique nervoso.
Rodrigo mudo, ali no topo das escadas rolantes, já com os pés parados no piso da cafetaria do museu, sem reparar no embaraço de quem queria abandonar as escadas

Dá-me licença?

Desculpe.

As pessoas a atropelarem-no, a passarem por cima dele, a olhar incrédulas, a pensar

Que estúpido

Por amor de Deus


E o Tomás, sem perceber, à espera do tal abraço. Sara a meter-se para dentro, sem voz, aos berros consigo

O que é que eu estou aqui a fazer?


A mão a deslocar-se da gabardine para alcançar o braço de Tomás, a pele ainda espetada, um pronúncio de sangue

Tomás, isto afinal não foi boa ideia.


O quê? Então, não é todos os dias que se fazem 40 anos? Não é Rodrigo? Viemos os dois a Paris ter contigo para que possas reflectir sobre a entrada na meia idade.

Tomás a rir, puxou o irmão, deu-lhe um abraço. Rodrigo atendeu o telemóvel e as suas primeiras palavras foram

Estou? Sim, Lila… Não. O meu irmão chegou agora. Para me fazer uma surpresa. Não, veio com uma amiga.

Sara olhava-o fixamente, como um farol avariado, a luz a penetrar apenas naquele ponto onde Rodrigo devia ter alma, onde Deus errou no projecto humano. Percebeu naquele momento que não havia nenhuma hipótese de fuga, de salvação. O mal estava feito. Era preciso viver com o mal.

Diz-lhe que jantamos todos juntos.

O quê?

Rodrigo, branco, a transpirar na testa, numa gota rebelde que descia da orelha para o pescoço, para a camisa azul oxford sem gravata, Rodrigo a ver onde a coisa podia piorar e Sara a insistir


Diz-lhe que jantamos todos, é o teu aniversário.

Tomás riu-se e disse que tinha fome, enfiou a mão no braço de Sara, virou-a em direcção à cafetaria do museu, já a bendizer as wrapp de salmão com abacate e o maravilhoso sumo de ananás com hortelã, tudo isto seguido de um maravilhoso crème brulée, bem queimado. Sara ouviu Rodrigo suspirar, gemer, continuando ao telefone, a explicar, a organizar eficazmente o seu cenário.

Um impostor. Sou um impostor.

Sara viu o menu com cuidado, as unhas impecáveis, o polegar escondido na palma da mão, dobrado para que o sangue não se confunda com dor ou castigo. Pede um chã, Lapsong Suchang, escolhe pelo nome, porque lhe soa bem, faz lembrar coisas do Oriente e ela acredita que se se rodear de calma, não enfiará o garfo de design moderno na mão do Rodrigo, na perna, no pescoço. Ele senta-se, o telemóvel na mão, o gesto do desligar quase pesaroso.

Não estás nada contente por nos ver, Rodrigo.

Não, não é isso, é só… bem a Lilla tinha planos e…

Não queremos estragar os planos, mas jantamos todos e amanhã já cá não estamos, maninho.


Tomás enche a boca com comida e sorri. Sara não aguenta e dispara

Desculpa lá, diz-me o que é que se passa. Ainda andas com a Lilla?

Não…

Não? Explica-me lá. Tu já não andas com ela, mas continuas a comê-la e portanto ela tem a ilusão de que anda contigo. É isso, não é?

Rodrigo considerou as alternativas, a possibilidade de converter a situação a favor dele e dele apenas, mas Sara não lho permitiu. Ficou a olhá-lo com a dureza da verdade e ele nem respondeu, porque já nem fazia sentido.
Uma semana antes, no aeroporto da Portela, aos beijos, com a mala a desfalecer no chão, o casaco pendurado, ainda se lembrava do corpo dela, um corpo de rebuçado.

Sara, Sara, onde andaste tu toda a minha vida?

E ela a rir, o cabelo revolto, sem maquilhagem, uma felicidade feita de sexo e cream crakers com doce de morango. Um fim de semana sem colocarem os pés na rua, a ouvirem música, a tomarem banho, a viver para dentro.

Devíamos ter feito isto antes.


Antes?

Sim, quando estavámos no liceu, antes de ires viver para Paris. Antes.

Rodrigo concordava e lambia-lhe as pontas dos dedos. Gostava dela assim. Sara, a despida. Não o assustava quando se reduzia a esse papel de menina que se submete, que enrola a ponta do lençol com os dedos, que se ri com a boca escancarada, pouco civilizada, nada educada. Sara, a descarada.
Dentro de casa, era calmo. Era fácil. Rodrigo não lhe podia dizer que perante os outros, em sociedade, não aguentava a forma desprendida como ela emitia opiniões, debatendo com igualdade masculinas as coisas da política e da economia, do mundo e da metafísica, com propriedade, sustento e teoria. Tomás ria-se, ria-se sempre, na cumplicidade, na vontade de a ouvir falar, de a ver reduzir a tremoços as questões mais relevantes do mundo.
Tomás, o irmão errado, a versão perfeita de Rodrigo. Sara não percebia nada disso, não tinha como. Tomás era como um irmão de sangue, desses com quem cortamos os dedos em miúdos, analisamos o sexo e fumamos os primeiros cigarros: um amigo científico, nada que se compare com um homem. Rodrigo tentava exercitar a memória. Quando é que a imagem de Sara disparara na sua direcção?
Era uma festa de anos qualquer. Não, era um casamento. Ele já feliz de álcool, ela muito elegante, Gerard Darel dos pés à cabeça, umas sandálias douradas com tiras na barriga da perna e um conjunto de sinais – três – a decorar-lhe a curva do joelho. Sara sentada e ele a olhar os sinais, com afinco, com deleite, amorosamente.

Não sou só para olhar.


Era a forma dela falar, aquela coisa directa, sem rodeios, aquela maneira de deixar os homens a olhar, os olhos húmidos, os seios espetados, a magreza dos braços, o pescoço, eterno. Naquela noite, depois da música, ela contou que tinha ido pôr umas maminhas. Disse-o com naturalidade, disse-o para o picar.

Queria sentir-me uma pornostar.

Ali com a vista sobre os três sinais a namorar o joelho, Rodrigo considerou a hipótese teórica de um filme pornográfico com Sara. A boca dela próxima da camera de filmar, as pernas abertas, de rabo para cima. Sem ousar contrariar a imaginação deixou-se ir. E, por fim na cama, revelou-se uma princesa. Nada semelhante a Lilla, nada semelhante a nada. Depois do sexo Sara ainda tinha um perfume estranho, um pouco azedo, que se instalava no pescoço, nas axilas, nas pontas dos dedos.

Não é perfume, é só o cheiro a sexo, ao nosso sexo.

Ao nosso sexo?

Sim, quando fomos um.

Para onde fora a rapariga da língua solta, os palavrões, os beijos no carro, a mão na braguilha, o pedido entre dentes

Agora, agora.


No fim, Sara despiu-se e ficou apenas a princesa.
Como é que se destrona uma princesa? Como é que se lida com a realeza? Os caminhos estranhos entre Lisboa e Paris passaram a ser volumes pesados de mentiras. Rodrigo mentia a Lilla, a namorada na cidade-luz, a Sara, a namorada na cidade-branca. Demasiada claridade faz mal. Confidenciou a Tomás o deserto e castigo em que se enterrara, a divisão, a impossibilidade de colocar uma ou outra fora da sua vida.

Rodrigo, as mulheres não são manipulações abstratas, são de carne e osso e têm sentimentos. Vais-te foder.

O mesmo Tomás que tinha passeado junto ao Arco do Triunfo a ouvir a pequena Lilla dissertar sobre o trabalho colossal de introduzir dados no computador para produzir jogos de lógica. Lilla com o rosto pequeno, moreno, o corpo encolhido na roupa sem graça, dois percings, 25 anos, talvez. Rodrigo ainda tentou evitar a conversa, evitar o encontro, contudo o irmão era demasiado batido nos esquemas e nas mentiras. Queria ver onde estava a divisão. Gostava de Sara, podia gostar de Lilla, mas tinha de ver.
Lilla não passou no teste, pouco importa. Rodrigo percebeu e, uma semana depois, por sms avisou o irmão que estava tudo terminado. Nessa altura, Sara já sabia tudo. Tomás era a lealdade em pessoa. Não lhe passou pela cabeça a possibilidade do silêncio.
Sara foi implacável. Dura. Não acreditava no amor, dizia com indiferença.

Podemos estar juntos e nada mais. Tu és só mais um homem.

Rodrigo sentiu-se violado na sua masculinidade, na sua pretensa sensibilidade, preferia que ela berrasse, que lhe batesse. Sara, a princesa, tinha escolhido ser Sara, a realista. Nada de fitas, nada de amuos. Rodrigo disse que não acreditava em relações à distância.

Eu não acredito em mentiras, Rodrigo.

Para redenção de todos os pecados, Rodrigo telefonava, mandava entregar flores, escrevia sms em português e em inglês. Vinha a Lisboa e aterrava na cama de Sara, uma cama de dois metros com 25 centímetros de rio Tejo, uma pequena benção.
Foi assim durante meses. Até que Tomás telefonou.

O maninho faz 40 anos para a semana, vamos a Paris fazer-lhe uma surpresa?

Sara preparou a mala com cuidado. Escolheu a lingerie, a maquilhagem, os saltos altos. Comprou-lhe uma pulseira van Dihn, discreta, elegante. Como Rodrigo. Como a imagem que tinha de Rodrigo.

E agora estavam todos à mesa de um restaurante da moda em Paris, Sara, Tomás, Rodrigo e Lilla. Todos a falarem francês. Sara fez o seu número de princesa. Só vacilou quando Rodrigo deu a mão a Lilla. Sara pediu desculpa, foi à casa de banho e mandou uma sms

De mão dada, não aguento.

No fim, Lilla pagou o jantar e levou Rodrigo para uma noite de sexo frouxo, conforme vaticinaram Sara e Tomás, concordando que ainda precisavam de mais álcool.

Estou tão sozinha, Tomás.


Deitaram-se por volta das quatro da manhã. Sara tinha uma dor de cabeça, os olhos inchados de chorar. Tomás aflito de arrependimento.

Que ideia a minha.

Por volta das sete, alguém bateu à porta do quarto de Sara. Era Rodrigo. Ao pequeno-alomoço, Tomás ficou a saber de todos os pormenores.

E tu, o que fizeste?

Comi-o e e depois cuspi-o.




segunda-feira, 17 de novembro de 2008

o pequeno drama

Os olhos abriram-se muito e Inês explicou que todos nós fazemos pequenos dramas, é apenas preciso entender que são dramas construídos por nós por necessidade dessa dimensão de perigo ou adrenalina. O drama dá-nos a hipótese de testar emoções. A conversa prosseguiu e fiquei a meditar naquilo como num mantra pequeno drama, pequeno drama, pequeno drama

domingo, 16 de novembro de 2008

ela outra vez


Dentro desta mala tenho todos os meus segredos. Consigo transformar-me de corpo e alma. Faço o meu papel. Do outro lado do espelho há uma estranha que me cumprimenta. Tenho medo dela, mas não digo a ninguém.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Ainda ela


Não se esqueçam de me gritar, de me avisar quando for a minha vez. Não adianta fazer gestos bruscos ou delicados. Sou míope. Preciso que me gritem.

Ela


Só na sombra é que encontro alguma paz. O sol persegue-me, entra-me pelo azul dos olhos, enche-me a cabeça de preguiça e as ideias não me ocorrem. Tenho suor nas costas, na curva do peito. A única coisa que quero é que me deixem em paz, que não falem comigo, que não me oiçam pensar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Congo

Demora um minuto e faz toda a diferença: a população do Congo precisa de protecção.


http://www.avaaz.org/en/european_action_on_congo/?cl=147011752&v=2419

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

play dead, roll over


Se fosse possível iria rebolar na relva e coçar as costas.
Tudo o que eu queria era ser um cão velho, cheio de manhas e conseguir rebolar com satisfação.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

30 selos nas costas

Quando entrei no consultório fiquei fascinada a ver os pequenos selos redondos cada um com o seu creme: azul, verde, transparente, vermelho, cor indefinida. São provas de contacto, disse a médica. Mandou-me tirar a camisola e a camisa e colocou os trinta selos nas minhas costas. Disse-me que o banho, até sexta, terá de ser limitado e que para pessoas mais impressionáveis que mantenham contacto com as minhas costas devo dizer que é um emplastro, nada de especial. Até sexta tudo pode acontecer.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

cisnes no Sena


Eram sete cisnes no Sena, perto da ponte que nos traz ao Louvre.
Um deles era um príncipe amaldiçoado.
Não perguntei como é que sei, mas sei.
Há coisas que se sabem com alguma facilidade.

(foto EV)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Até segunda feira

Until The End

You've got a famous last name
But you're not to blame
Baby I see you for who you are

A one time apple queen,
And a one time tramp,
And an old time movie star.

You're a shell picker,
Of the pickiest kind,
But you always find the ones to keep.

And in or out of bed,
You keep you're head wide open,
'cause ya don't only dream when you're asleep.

Like a child ... you remember,
But I forget ... all my dreams.

I used to think,
That someday I'd relax a little,
And be more like you.

Then I realized,
How silly that thought was,
Needed to stand in my own shoes.

And from over here,
I can see you cry,
Don't even try ... to pretend.

'cause he's hurt you,
So many times,
Baby don't go back again.

Like a child, you forget,
But I remember everything..and every sting.

And through all the games,
We'll both stay the same,
As we've always been,
Through the fat and thin,
Until the end,

Norah Jones, álbum Too Late

Until the end.

A minha amiga Margarida

A minha amiga Margarida mandou-me um texto chamado toc toc toc.
É sobre o futuro do planeta, sobre os sonhos por cumprir, sobre a versão realista e futurista do mundo na versão wall-e.
O filho mais novo pergunta-lhe como era a terra antes, como era a nossa vida e porque é que deixámos de ser assim, bons para nós e para o sítio onde vivemos.
Quando falámos sobre este texto pela primeira vez o texto não existia e Margarida, que tem um sorriso do tamanho do mundo, disse:

- O meu maior sonho era os meus filhos perguntarem: Mãe, o que era a guerra?

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

We did it

E a História fez-se nos estados unidos e hoje o mundo parece um pouco melhor.
O discurso de aceitação de derrota de McCain foi uma lição.
Ainda bem.
Há esperança, portanto.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Yes We Can

Acreditar é uma forma de poder. Ainda é cedo para os resultados das eleições americanas, mas vou trauteando interiormente que há esperança, que faz sentido, que Obama tem um grão de paz na sua mão que fará a diferença. Para saberem mais, para o saberem de uma forma inteligente, vão ao blogue da Patrícia Fonseca, que faz o enorme favor de ser uma das minhas melhores amigas: www.blogkiosk.blogspot.com

Façam o favor de acreditar. Não há impossíveis, apenas uma percepção limitada do que é possível (Dalai Lama dixit)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

o meu nariz caiu

Não foi de repente, foi gradual. Depois da garganta - inflamada e a puxar para a tosse - o nariz decidiu despedir-se do meu corpo. A médica da Croácia nas urgências tinha demasiado rimmel nos olhos, uma voz bondosa e uma caligrafia infantil.

- Muitos líquidos. Três dias de cama.

Fiz que sim com a cabeça, não por concordar, mas por cansaço, para não ter de dizer nada.
Odeio a falência do corpo.

sábado, 1 de novembro de 2008

o amor maior



Em plena rotunda do Baptista Russo o amor renasce e é bom, corajoso, audaz e promissor. Bem haja.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 10 Fim

(Cheira o caril a cozinhar)

Nessa noite, sozinha na nossa cama, sonhei que o cozinhava. Ele que adora a minha comida. Era capaz de esperar quatro horas por um borrego assado, um couscous mais sofisticado, uma tagine de mel e frango, uma tarde de faisão com cebolinhas. Ficava aqui, aqui mesmo, a ver os meus gestos, a fazer perguntas infantis e a falar ao telemóvel. Em vez de me sentir vigiada e escrava do seu apetite, eu dançava pela cozinha, feliz, feliz.

(Rodopia)


Nunca fui tão feliz na cozinha. Com ele aqui a ver-me no meu melhor. Um homem agarra-se pelo estômago, dizem. Que ironia. Casou ele com uma chef e mesmo assim não lhe bastou. Levou o teu saco de ginástica para outro lado qualquer. Espero que se alimente de comida de plástico. Espero que ninguém lhe faça sopa de tomate com farripas de ovo cozido ou com natas e alecrim. Sobretudo espero que tenha dores de estômago. Regulares. Foi uma praga que lhe roguei no dia em que sonhei que o cozinhava. Cozinhei-o como naquele filme do Peter Greenway sobre o ladrão, a amante e o amante dela. Limitei-me a ser mais criativa e a multiplicá-lo por diferentes pratos. Não o desperdicei. Isso nunca. Primeiro parti-o aos bocados, sem poesia, sem medo. Com um destes cutelos.

(Mostra a faca)

Estava na minha cozinha, lá no hotel, uma cozinha enorme, cromada, imaculada. Parece um laboratório a minha cozinha. É o que dizem. E ele? ele pingava sangue por todos os poros deitado aos pedaços na minha mesa. Tinha as facas alinhadas, como um cirurgião, e tachos e panelas à minha volta. Atirei as suas mãos para um tacho para fazer com grão, já sabem como gosto de grão. Assei as suas pernas e fiz os seus miolos num wok com um pouco de azeite com estragão.

(Vai à janela e diz lá para fora)

Lamento se vos desgosto com esta descrição. Era o meu marido e eu comi-o. Estava bom. Um pouco enjoativo para o final. Acordei suada.

(Encarando a plateia)

Sabem quando o suor fica a empastar o pijama? Como se tivéssemos medo da concretização exacta do que sonhámos? Porque eu, eu, seria bem capaz de cozinhar qualquer coisa. Foi essa a distinção verbal que tive no fim do meu estágio. Ser capaz de cozinhar qualquer coisa. E o sonho era real. Fiquei em pânico e corri para o telefone para ouvir a voz dele. Eram cinco e pouco da manhã e ele respondeste:

(Muda de voz)

O que é que tu queres? E no seu tom de voz, a segunda pessoa do singular – o tu que era eu – era uma sentença relativa à minha imbecilidade, à minha estupidez. Ele estava vivo e farto de mim.

(Senta-se de novo)

Durante dois meses não nos falámos. Voltei a trabalhar todos os dias. Desenvolvi uma técnica nova para fazer espumas, para impregnar sabores em massa folhada. A minha tristeza concentrava-se na beleza da cozinha: tinha ali todo o seu esplendor. Até ao dia em que me encontraram no frigorífico das carnes a chorar. Um clássico, não acham? Meti baixa. Obrigaram-me a meter baixa. Dizem que os chefes têm um ego e vaidade equivalente ao seu talento. O meu ego esmoreceu, acredito que o meu talento também. Nunca foi isso o mais importante. Podia fazer uma lista de coisas importantes e nenhuma passa pela comida. Cozinhar é não estar sozinho. E na cozinha eu sou a estrela. Cozinho qualquer coisa, já vos disse? Não preciso de Deus nem dos homens para cozinhar. É um acto solitário. Como um escritor, um poeta, um músico. Amanhã regresso ao trabalho. Ele começou a mandar mensagens há uma semana. Mensagens cordiais, mas significativas, mensagens que me prendem como a carne no cutelo. Palavras que soam a coisas que quero ouvir, mesmo que sejam profissionais

(Muda ligeiramente o tom de voz)

Vou dar um jantar para dez pessoas, adorava que fosses tu a chef. Pode ser? Faz um orçamento. Um beijo.

(Muda para a sua voz normal)

E depois um Z para assinar, a sua inicial. Começou assim a troca, o diálogo por escrito. Mandei várias sugestões de menus, preços, ideias inovadoras. Ele respondeu sempre. Bem disposto. Como se a palavra escrito tivesse essa magia do som e eu percebesse pelo tom que já não está farto de mim. Amanhã começo a trabalhar. Depois de amanhã é o jantar dele, na casa dele, o jantar que eu vou cozinhar. Vamos estar frente a frente. Finalmente conseguirei ver todas as partes que cozinhei em sonhos e talvez falar-lhe desse sonho e da maldição de o ter em mim, como um invólucro, uma pele, uma geleia. E ele? Como é que acham que estará? À espera de mim, a sua mulher? À espera de mim, a chef? Seja como for, levo-lhe os papéis do divórcio, porque o amor quando azeda e passa de prazo pode contaminar tudo e eu, nesta minha cozinha, completamente sozinha, posso-vos dizer que não quero azedar, quero manter-me no lado dos frescos. Desculpem a piroseira. A metáfora da merda é melhor, mas não se aplica. Não se pode aplicar. Porque eu posso cozinhar qualquer coisa, não é? E isso inclui a minha vida. Acho eu.

(Sorri)

Podia fazer agora um...

(Abre o frigorífico)


Sim, carpaccio de abacaxi com hortelã fresca. Simples. Mas eficaz. Ajuda a digestão. Já vos disse que apareci em todas as revistas gourmet que existem na Europa? Todas sem excepção. Não é um grande feito para uma mulher, as feministas que me perdoem, é um feito para qualquer pessoa, independentemente do sexo. O mundo seria mais simples sem sexo, sem sexos. Isso, sim, seria um acontecimento, não acham? Vou abrir uma garrafa de vinho.

(Fá-lo com todos os gestos de um profissional)

Para comemorar o fim do dia.

(Olha para a janela, está escuro lá fora)

À minha. E à vossa.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 9

(Desliga, por fim, a água, tinha-se esquecido)

Como é que um marido desaparece? Começa por ser em pequenas coisas – as horas que se esqueceu, um jantar em silêncio, algo que não partilha, um pensamento isolado, a vontade de fugir - e depois em concreto já cá não está. Até que me deixou uma mensagem no email a dizer que o amor não podia tudo, que a verdade das coisas era demasiado complexa, que eu o absorvia em demasia. O meu marido acusou-me de ser demais. Mais que a conta. Seria, porventura, tida como um ser especial? Não. No email ele teve o cuidado de sublinhar a minha normalidade. Escreveu assim:

(Muda de voz)

Nada do que fazes é consequente; esgotas-me. Estou cansado de ti e de mim, de nós. Perdoa-me. Talvez eu não seja suficientemente bom para ti. Para nós.

(Voz normal)


Nós.

(Começa a cortar cebola com profissionalismo e, num gesto de fúria, começa a chorar)


Sim. Tudo passa. É uma fase. É assim. E eu estou tão cansada de combater a fase, a normalidade e, claro, o regresso da tristeza. Ninguém me quer? Tenho algum defeito inultrapassável? Não agrado? Onde? Na cama? No que digo? É a minha roupa? Ou sou só eu? Só eu...

(Novo anúncio sonoro de email. Grita)


Larguem-me! Não quero saber.

(Recompõe-se, vai ao computador, limpa as mãos a uma toalha de cozinha)

Sim, ainda estou viva e funcional. É bom ter amigos que perguntam. Mesmo que tenham mentido e traído. Mesmo que me digam uma coisa e pensem o contrário. Estou convencida que é essa a natureza dos amigos. Para o bem e para o mal, vão aplacando a nossa realidade, servindo de almofada para as pancadas. Se nós deixarmos, claro. Porque se não deixarmos, os amigos afastam-se.

(Muda de voz)


Não há paciência para ela, coitada. Está obcecada. Não atende o telefone, não devolve mensagens. Gosto muito dela mas não tenho vida para isto.

(Voz normal)


Se não disseram isto, disseram algo de semelhante e os poucos amigos que eu tinha ficaram do outro lado do muro, numa outra realidade, cansados das minhas lamúrias, de se sentirem impotentes na ajuda que queriam prestar-me. Queriam: formatar-me para outros dias; decorar-me de boa disposição e pensamentos positivos; afastar-me de ele como quem afasta uma criança do fogo. Os meus amigos estavam convencidos da sua sapiência sentimental, sabiam melhor e mais do que eu. O que até é provável, se querem saber.


(Regressa ao computador e responde à mensagem)


Fico aqui a olhar as letras no computador, o nome dele e a pensar na esperança como a primeira droga da humanidade. Eu tenho esperança que o passado possa ter sido diferente. Quer dizer, tenho esperança que tivesse tido a lucidez de mudar o que obviamente não mudei. Sofro disso. Do passado. E tenho os emails deles para me recordar, não é? Houve uma altura em que o ridículo de ser quem sou se manifestava na partilha destes emails com os tais amigos e amigas.

(Muda de voz)


Meu Deus! Como é que tu aturas isto? Tu não vês que ele está a gozar contigo? Não te atrevas a responder? Porque é que não experimentas fazer terapia?

(Fecha o computador e volta à voz normal)


Não quis fazer terapia, lamento. Para me confessar vou ao padre, porque sempre é mais económico e, além disso, tenho salvação. Duas aves Maria e um pai nosso, dois rosário e uma novena. Coisas de Deus, o tal em que não acredito, mas que tem um sistema muito funcional e ao qual podemos recorrer em caso de desespero. Fazer terapia seria querer mudar a realidade e isso, ao contrário do que todos possam imaginar, eu não queria, nem quero. Voltamos à metáfora da merda.

(De faca na mão)

Quando o mundo desmoronava à minha volta, a minha casa ficou mais vazia, sem os livros dele, os sapatos dele, as fotografias dele, os jornais desportivos dele e a enorme estatueta que o pai lhe ofereceu quando acabou o curso. Houve um período de assimilação. Não era um período de luto, porque me recusava a acreditar na nossa morte. Era apenas um desvio. Ele tinha saído para pensar. Para ter tempo, para pensar, para olhar o mundo lá fora. Acabaria por perceber com clareza todas as minhas virtudes e a nobreza do meu amor. Havia algo de cavalheiresco nisto tudo e o cavaleiro andante era eu. Fui durante muito tempo. Mandava-lhe mensagens e ele respondia sempre. Sempre que o fazia o meu coração batia mais. Batia melhor. O coração é um músculo interessante, com uma agenda e orientação só dele e o meu batia com o nome dele a piscar no computador, com o seu toque no telemóvel. Podia ser para tratar de um pormenor sem significado verdadeiro para a rotação do planeta, mas ele era o sol e eu a terra e nada me fazia mover desta condição. Ele ligava porque tinha esquecido um extracto do banco. E eu media as suas palavras. Todas. Analisava os verbos aplicados, os adjectivos, as pausas, as entoações a forma como se despedias. Era patético. No mínimo. Isto já foi há algum tempo. Mas continua. De alguma forma. Porque eu acho ainda que o meu passado se vai transformar e o meu marido vai voltar, comer a sopa, o caril e os bolinhos salpicados com noz. Eu serei uma esposa perfeita.

( Senta-se, exausta).

Tenho tanta pena de mim. Às vezes. Como agora.

(Levanta-se)

Outras vezes não, perdoem-me, mas não, tenho pena dele, porque não entendeu nada de nada, nada de mim, nada do amor. Nas suas mensagens vou intuindo que não está bem, que precisa de colo e que acha que legitimamente o pode encontrar aqui. O que aconteceu quando ele decidiu voltar? Duas semanas depois do abandono chegou com um saco do ginásio e disse outra vez:

(Muda de voz)


Preciso de ser abraçado todos os dias.

(Voz normal)

Não lhe fiz perguntas e quando fiz, por fim, eram todas sobre mim e lamento isso. Não devia ter querido saber se o problema era meu, se era eu, a minha cabeça, o meu corpo, mas o que querem? A insegurança mata e mata mais depressa quando estamos sozinhos e temos tempo para pensar. Ele riu-se muito, ainda me lembro do tom do seu riso - não sei hoje se jocoso, se genuíno - ele esticado na cama, a sua perna em cima da minha. O conforto da conjugalidade pode ser apreciado nesses gestos depois do coito, sabem? Sim, devem saber. O casamento é também isso, o momento em que nos abraçamos depois do sexo. E naquele momento em que perguntei, chorosa, sem um pingo de dignidade pessoal, sem nada para esconder, com as minhas armas depostas, ele riu-se e desvalorizou o meu desgosto. Deu-lhe uma não importância e assim encolheu-me, diminui-me, amachucou-me e, já insignificante, pôs-me no bolso. No dia seguinte saiu para o trabalho e levou o saco. Não perguntei nada. Fiz jantar, acendi velas. Fiz lombo recheado com presunto e queijo, regado com vinho do porto, e para acompanhar puré de castanhas. Estava, asseguro-vos, divinal. Comi-o todo.

Peças em não sei quantos actos 8

(Triste)

Agora por outras razões. Naquele tempo - parece que foi há tanto tempo - o tempo não tinha qualquer poder sobre nós. A minha tristeza foi suspensa por prazo indeterminado. Viver na minha pele era uma consequência da existência dele e ele era o princípio de um destino que seria nosso e só nosso. Ele dizia:

(Muda de voz)

Preciso de ser abraçado todos os dias.

(Voz normal)

E eu abraçava-o. Com cuidado. Com força. Com tudo o que tinha. Há na entrega ao outro uma beleza ímpar que não se repete. Senti isso. Senti sempre essa beleza quando me beijava. O melhor do sexo passou a ser esse abraço que nos ligava no cansaço, o corpo dele no meu, descaído sobre mim, a minha mão no seu peito, as pernas a tocarem-se; por vezes só um pé no pé. Havia assim uma perfeição muda, suada, animal e descansada das coisas do mundo. Não pensava em nada. Nem mesmo nele. Pensava no meu desejo e na corrida para o prazer as vezes que fosse possível. O nosso sexo era eficaz, julgo-o hoje com a distância de quem não espera retomas, porque era profundamente egoísta. Encarávamos o sexo na procura do êxtase e mais nada. Não me venham com tretas sobre a singularidade do momento, os corpos enlaçados, somos só um no acto e merdas dessas. Nada disso. A perfeição era a conquista antecipada do orgasmo e nessa medida estávamos bem um para o outro porque o fazíamos em separado, usando o corpo do outro como tantas pessoas usam comida. Ter prazer. Deixá-lo durar e procurá-lo novamente. Ele fazia-me sentir adolescente, ninfomaníaca, ousada e, por fim, fodível. Sim, porque uma mulher pode sofrer por esse excesso de preocupação com o sexo alheio e por sentir que o seu falha precocemente. Um sexo estragado. Ineficaz. Sem sabor. Posso não repetir a dose nunca mais. Como é que se diz? Não devemos voltar ao lugar onde fomos felizes. Eu fui muito feliz.

(Suspira)

Não sei se ele foi. Isso agora pouco interessa. Quer dizer... interessa-me apenas a mim porque me devolve ao lugar natural de mulher estragada. É uma ironia, não é? A vida não tem 120 minutos, é um filme que corre vertiginoso e sem guião. Dói e cansa. E no fim? Qual é o objectivo? Vamos reencarnar? Voltar ao princípio ou não resta nada de nós, absolutamente nada quando o corpo se desliga? Às vezes fico a olhar a carne à minha frente e vejo-me. Carne a apodrecer. O tempo não pesa o que nos tornamos, pois não? São os outros que nos medem e pesam, que nos viram e reviram, que nos dão significado. Eu sabia que voltaria a estar só, terrivelmente só.

(Senta-se no banco, faz uma pausa e levanta-se novamente)

De alguma forma inconsciente era claro que a vida não podia ser aquilo e que terminaria. Algures na minha cabeça eu sabia. Sempre soube. Como se sabe que tudo isto...


(Abre os braços para designar a vida)


... é precário, uma projecção mental do ideal. O tal filme que fazemos para nós, uma pitada de melodrama, de comédia e de terror. Tudo sem legendas para que se percam algumas palavras, acções e pensamentos. Ele e eu. Era como se a nossa história fosse um atropelo na ordem das coisas, uma dimensão paralela que se esgotaria por não ser coincidente, por fugir ao padrão, por não ter um carril colectivo onde assentar. Sabendo do fim - sabendo do mal que me podia fazer - deixei os dias correr. E, claro, um dia ele desapareceu. Deixou de ser transparente.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 7

(Os bolos estão no forno, prova a sopa e desliga-a)

O que desprezei foi a falta de consideração pelo morto e ainda o medo. Detestei o medo dele. Lembro-me de pensar que não seria possível viver com ele o resto da vida. Porque o resto da vida, num casamento, implica uma série de coisas. Posso fazer uma lista. Devia ter feito uma lista antes de casar a segunda vez. Ora, uma receita para um casamento, bom ou nem por isso.

(Parece meditar)


... Ingredientes: harmonia, capacidade de diálogo, de partilha, confiança, sentido de humor, dedicação, aceitação dos defeitos do outro, não como um desafio que se pretende quebrar, mas como parte integrante do que se ama. Estou, claramente, a fazer filosofia básica. Um casamento é ver alguém a desfazer-se em merda, cheirar mal e não querer sair dali a correr. Não me ocorre nada melhor.

(Faz uma pausa)


Acho que vou fazer um caril de grão...

(Começa a mexer nos armários outra vez. Há um sinal sonoro de entrada de mensagem que vem do portátil. Surpreende-se)

Quem me quer? Hum, pois. Está tudo a postos, tudo perfeito, nada de preocupações.

(Escreve a mensagem, quando termina vai abrir um frasco de grão e um frasco de leite de coco e continua a reunir os ingredientes)


Onde é que eu ia? Sim, casar ingredientes é tão complexo quanto casar pessoas. No outro dia fiz uma salada de queijo cabra com morangos e vinagre balsâmico. Parece uma mistura estranha. Funciona. De uma forma quase próxima do perfeito. O meu segundo casamento foi assim. Eu saltei do penhasco. Abandonei o meu emprego, a minha carreira. Queria ter um filho. Queria ser a mulher de alguém e sentir nesse estatuto a dimensão extraordinário de me saber melhor pessoa por isso. Era amor. Falávamos horas sem fim. De tudo. Não havia segredos. Contou-me tudo. Ficou transparente.

(Abre a torneira)


Como água. Éramos um do outro e contra o mundo e nessa união escondemo-nos da maldade. Por uns tempos. Não havia necessidade de ir à rua. Como agora. Ser um do outro sem condições é inebriante. O outro pode se tornar um vício. A dependência instala-se devagar, traiçoeira, não damos por ela, é fingida e cruel. Ataca-nos num momento de ausência. Ele que não está o mundo deixa de fazer sentido. De uma forma desproporcionada. Tudo se desfaz. Percorremos os mesmos passos à procura, como quem espera e procura a própria sombra. O mundo parece ter encolhido. Não existe China, Amazónia, Equador, gelo a derreter na Pólo Norte. O mundo é ele e, por isso, podemos abdicar do sol e do rio lá fora, de rir e estar. Como agora.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 6

(Fecha os olhos como se estivesse a ouvi-lo)

Era quase perfeito. Ainda não tínhamos 20 anos. Eu sentia que o meu corpo era uma experiência científica e queria ser uma cobaia. Ele estava mais interessado em perceber a diferença de colloratura da Maria Callas. Foi aqui que começou a minha suspeita: sou ou não sou uma infodível? Gostava tanto dele que quando arranjei um outro namorado fui a correr comprar o mesmo perfume. Quando tinha saudades do primeiro obrigava o segundo a ouvir óperas infindáveis e cheirava-o. O segundo, chamemos-lhe assim, citava Woody Allen: “Tanto Wagner dá-me vontade de invadir a Polónia”. Era engraçado, o segundo. Não gostava muito de sexo, ou melhor, gostava quando gostava, na hora dele, no momento dele. Era uma coisa rápida e repetia-me ao ouvido:

(Murmura)


...não te mexas, não te mexas. Eu ficava ali como... como um frango no churrasco a pensar na minha lastimosa infodibilidade. Mas este era bondoso. Perguntava-me todos os dias como é que eu estava e eu todos os dias respondia, invariavelmente: cansada. Era mais forte do que eu, mais forte do que outro cliché qualquer.

(Fingindo responder)


Bem, querido, muito bem, estou maravilhosa, estou tão feliz. Fazes-me tão feliz é só pena que me doam as costas.

(Voz normal)

Todas as minhas conquistas profissionais levavam a este cansaço e eu era um bombeiro voluntário para as causas maiores e menores, sempre disponível e sabedora. As coisas que eu sei? Não se imagina as coisas que eu sei. Ou que posso fazer. Ou que fiz. Molhos, misturas, combinações, sobreposições, impregnados, espumas e névoas. Uma verdadeira feiticeira.

(Faz uma pausa)


Casei aos 30. Com o terceiro. Não fomos felizes porque não estava escrito, acreditando na minha mãe e na mãe dele: Deus as guarde por concordarem nisto porque em tudo o mais discordavam sem piedade. O meu casamento durou dois anos. Foi rápido. Foi mesmo indolor. A recordação mais viva que tenho do casamento é uma imagem do meu marido a chorar o pai morto.

(Começa a colocar a massa nas formas e abre o forno)

Parecia um miúdo. Não parava de dizer:

(Muda de voz)


Tenho tanto medo de morrer, tenho tanto medo de morrer.

(Voz normal)


E eu? Não lhe podia dizer que não ia morrer, por isso fiquei ali a ver. A minha mão no ombro dele. Parecia uma cena de filme. As pessoas chegavam à capela e apresentavam-me as condolências de forma solene e ignoravam o filho do morto porque ele se prestava a isso. Só dizia:

(Muda de voz)

Tenho tanto medo de morrer, tenho tanto medo de morrer.

(Voz normal)

Fazia pena. Por um lado. Detestei a sua fraqueza e desprezei-o. Por outro... Há sempre dois lados, não é? Mesmo na cozinha: o lado de fora do rosbife, o seu interior; a crosta de um bolo; o seu recheio. Enfim...

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 5


(Voz normal)


Coisas assim. O mais engraçado é que socialmente rimos destes programas, destes conceitos cheios de bom senso e sabedoria básica. Rimos por desprezo intelectual, claro, rimos porque a infelicidade tem mais glamour, uma maior potencialidade para nos transformar em alguém interessante. Isso aprendi com a minha mãe e com todas as outras mulheres da minha vida, a minha irmã, a minha melhor amiga, a minha colega na escola, aquela que me bajulava na faculdade para eu fazer os trabalhos de grupo sem ter de se maçar. Sofrimento e dor são sinónimos de uma condição intelectual que nos almejara um outro qualquer caminho de sucesso que ultrapassara as conquistas das nossas mães e avós. Grande frase. Uma merda. Digo eu. Prefiro todas as séries americanas de violência, onde o bem e o mal não conhece fronteira precisa. Séries sobre polícias, sobre psicólogos que fazem perfis de assassinos. Fico a olhar para isto e a pensar: são tão generosos, dão tantas ideias a quem precisa delas, ideias de violência e crueldade infinita. Ideias exequíveis. Tremendamente fáceis de imitar. E eu começo a imaginar os potenciais assassinos que cada episódio gera; homens e mulheres com um bloco na mão a tomar notas. Sentados em frente à televisão, escrevinhando: a melhor forma de escapar; de matar a mãe, de dar o golpe do baú, de morrer. Uma merda.

(Suspira)


E eu aqui, pacatamente, na cozinha a ver se não me engano na quantidade de farinha para estes bolinhos. A fazer os mesmos gestos de sempre. Gestos femininos. Cozinhar e lamuriar. Duas combinações possíveis, que encaixam na perfeição, que contribuem enormemente para o avançar do Planeta, cansado na sua rotação ligeira. É preciso um salto de fé para ultrapassar as convenções. Eu sou prova disso. Não fiz o percurso esperado e tive um sucesso precoce com o qual, reconheço agora, lidei mal por ingenuidade. Achei que era a minha hora. Acabar o curso, estagiar numa grande cadeia de hotéis, chegar ao topo antes dos 30 anos, ter um grande ordenado.

(Elevando a voz)


Mundo: eis as minhas conquistas.

(Voz normal)


Não consegui, porém, abandonar a ideia da tristeza ou do sofrimento, da dificuldade de estar e de viver. Antes de morrer, morri como tantas outras mulheres da minha geração e de todas as gerações anteriores. Como se a infelicidade fosse uma dádiva ancestral. Um estigma. Não combati esse sentimento com a mesma convicção com que me esfolei para fazer uma carreira digna de qualquer outro. E não, não

(Abanando a cabeça)


... não vou fazer desta lamúria um discurso sobre homens e mulheres, porque francamente, estou-me na tintas para a distinção. Surpreendidos? Não faz o meu género. Não vale a pena. Os homens podem ter força, poder ou ser simplesmente patéticos. O meu primeiro namorado era a minha alma gémea. Cantava ópera. Tinha uma voz castrati. Linda. De mulher. O que ele gostava de se imaginar num palco a cantar uma ária da Norma. Casta diva.

(Muda de voz)


Consegues ouvir, querida? Consegues? Não é uma maravilha?

domingo, 26 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 4

(Senta-se no banco, cansada)

Claro que se eu me suicidar Deus não irá comparecer a esta pequena aula. Mandará alguém? Um anjo caído em desgraça com asas negras? Um anjo jocoso? Ah, eu não acredito em Deus. Não me é conveniente. Lamento. Agora não posso. Quando era mais nova, talvez. Não me debatia com Deus, imaginava os anjos, imaginava-os sem asas, a olhar para mim, a ouvir. Talvez tudo isto tenha a ver com a minha vida, quem sabe? Não consigo acreditar. Na verdade, não acredito por princípio em nada ou ninguém. O bem e o mal têm sempre uma adversativa, um contra argumento, uma outra perspectiva e, no fim, tudo depende. E essa generosidade de factores perturba-me. Sinto-me uma sobrevivente. Como nos relatos que ouvimos das diferentes atrocidades que ocorrem no mundo: pessoas que estiveram em campos de concentração; pessoas que passaram fome; que ficaram órfãos em crianças; pessoas abandonadas; pessoas abusadas. Consigo imaginar a dimensão da tragédia de qualquer um. Imaginar é uma forma de viver. É mais fácil imaginar uma vida a partir do outro, da história do outro. É mais fácil do que construir uma vida. Seja ela qual for. E o mais extraordinário neste decadente, embora avançado, século XXI, é que não temos de conviver para ouvir as histórias dos outros. Basta uma televisão.

(Olha para a televisão)


Ou um computador.

(Olha para o lado e liga o portátil)


Posso ficar bêbada de gente e de histórias a partir destes quadradinhos de tecnologia. Não nos deixam sozinha. Dão-nos sentido. Inspiram-nos. Engordam-nos de nada. De um enorme nada que não visualizamos, mas que nos engana a fome de alma, de substância. Ajudam-nos a relativizar as nossas pequenas desgraças pessoais. Sempre. Olhem agora

(Encara a televisão)

Há estes programas com psicólogos e mulheres bem sucedidas, que falam pausadamente e que explicam teorias sólidas sobre a felicidade. Apelam à nossa vontade de ser feliz. De rir. De ser bem sucedido. Dizem-nos para viver um dia de cada vez. Que a procura da felicidade em si não traz felicidade. Fazem testes! Deve ser uma coisa de inspiração divina, os testes.

(Altera o tom de voz)

Dê uma pontuação de um a sete, sendo sete o mais alto. Quer alterar alguma coisa na sua vida?

sábado, 25 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 3

(Desanimada, começa a tirar formas de bolinhos de um armário)

Claro que já passei esta fase. A minha mãe é igual a tantas outras e, por vezes, é capaz de gestos absurdos de amor, de amor incondicional, que eu só não vejo porque não me interessa. É mais fácil não ver. Sou crescida, o mundo já não se divide entre bons e maus; entre um minuto de atenção da minha mãe ou a sua imagem compungida, ao telefone, a resolver qualquer problema emocional de um ser outro que não eu, alguém mais importante que eu por certo. Agora faço sopa e bolos e não os partilho com ninguém porque, porque... porque conclui que não vale a pena sair de casa, conviver, dar-me aos outros, esperar retorno, ser feliz. Banalidades. Coisas de mulher. Não, eu devia estar lá fora...

(Vai à janela)


... a cumprir o meu papel, a ser... A ser qualquer coisa. A funcionar. A fazer coisas. A pensar o mundo. Como avançar, como criar, como poupar o planeta, como ser activa e defensora dos animais. Coisas assim cuja vulgaridade assusta, mas que são, afinal, a condição humana. Não será, porventura, dignificante uma mulher estar na cozinha a dizer estas coisas e a pensar que o ideal é não fazer nada. Deixar-me estar. Saltar de um penhasco. Da janela. Não desta janela, claro. Não teria sucesso.

(Continua a cozinhar)


E o lado trágico da morte não me enternece. Há o pitoresco que a morte sempre traz: como é que a minha mãe reagiria? O que vestiria no meu velório? Haveria um velório? Chegaria eu ao Céu? E Deus falaria comigo? Prefiro pensar que Deus falaria comigo para me esclarecer sobre os mistérios da vida, assim como numa aula de código para aprender a guiar o automóvel. Deus sentar-se-ia à minha frente com um livrinho com perguntas e respostas múltiplas. Portaste bem? A) sim B) às vezes C) quem? Eu? C) vá à merda

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos 2

(Voz normal)

E depois era vê-la, uma montanha russa de estados de espírito. Imaginem: uma mulher irritada, com as mãos em desassossego, mexendo na cara, coçando a cabeça, o tom de voz esganiçado. Depois dos comprimidos? Vinte minutos depois, outra mulher. Calma e dolente, uma coisa mole, os olhos meio vidrados. A verdade é que os comprimidos eram uma realidade extra, um cenário que a minha mãe procurava compor porque ele nunca tomava um comprimido, tomava dois. E nesse exagero nada inocente procura adormecer para tudo e para todos; procurava uma ausência de si própria sem abandonar o corpo. Lenta e precisamente. Os comprimidos arrancavam-na da matéria da realidade, como quem arranca as vísceras por momentos. Ficava, apenas os miúdos da minha mãe, coisas sem graça a boiar na nossa vida. Não me lembro de ser de outra forma, a receita de sucesso era esta. Em dias de festa a receita era recheada com um xarope de álcool que começava com um gin cortado com limão; depois um vinho encorpado - tinto, sempre tinto – e, para finalizar numa apoteose de gestos que me envergonham até hoje, um copo de whisky, liso, sem água, sem gelo. Um primor. Este é um dos lados, um dos aspectos da maternidade que me deu chão e sustentou a infância. Há outro. Porque a minha mãe, como todas as outras mães, é um bicho universal. Tem segredos só dela. Como compor o cabelo e nunca, por nunca, ficar despenteada, perder a compostura, deixar a ira ganhar corpo no corpo dela, tão bem escondido numa roupa que é, também, o reflexo da ideia que ela tem de si própria. Ela se acha, como dizem os brasileiros. Mas há muito mais sobre a minha mãe... muito mais... porém todo o seu brilho e genialidade se centram neste excesso de generosidade para com os terceiros. Nessa sua capacidade para ouvir. Ouvir os outros. Não para nos ouvir, a mim ou à minha irmã. Não falo do meu pai. Nunca falo do meu pai. Não vale a pena. Mas a minha mãe?

(Muda o tom de voz)


Tetas para todos! Venham, venham ver o leite milagroso da senhora e, por favor, ao saírem, façam o favor de ignorar a filha gorda e deixem uma palavra no livro de honra.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Peças em não sei quantos actos


Poderosa


Ela
(Uma mulher na cozinha, uma cozinha sofisticada. A televisão está ligada, a janela está aberta. Há luz do dia. Será de tarde. Ouve-se o barulho de uma faca a cortar legumes)

É reconfortante. Fazer sopa. São um conjunto de passos mecânicos. As batatas. As cenouras. As cebolas. A abóbora. No fim, se for caso disso, os espinafres. Uma lata de grão de origem francesa. Uma mão cheio de massa em forma de cotovelo. Uma pitada de sal. Ponho noz moscada. Não porque goste de noz moscada, atenção; mas apenas porque a minha mãe utiliza noz moscada em tudo o que faz e eu não a posso desiludir, pois não? Pois não.

(Faz uma pausa)

Está calor. Calor em demasia para fazer sopa. Mesmo uma sopa simples, sem rodelas de chouriço, arroz, massa, couve lombarda. É reconfortante fazer listas de alimentos. Listas de compras. Listas de actividades para a semana. Listas de prendas de natal. Listas. Podia fazer uma lista de emoções. Podia. Podia. Mas não vamos por aí. Isto vai ferver. Vamos fazer... bolos ou bolachinhas de azeite. Ainda é cedo.

(Começa à procura de uma receita nos livros. Para chegar à prateleira utiliza um banco e, já em cima do banco, olha lá para fora através da janela)


Não tenho talento para isto. Para apreciar a paisagem lá fora, para me reconfortar com as coisas do mundo. Será bom viver lá fora? Há quanto tempo é que não me atrevo a descer à rua? A sentir o sol? As pessoas a passarem por mim? Tenho algum receio das pessoas. Desde pequena. Em casa da minha avó havia umas arcas de madeira onde me enfiava para fugir aos outros. E sempre houve esta distinção: eu e os outros. Nunca fui uma doadora de sangue. Nunca fiz nada pelos outros. Aprendi isso com a minha mãe, claro. A minha mãe é a grande...

(Procura a palavra e, por fim, suspira)


... fábrica... não, a grande porca leiteira, fornecedora de leite a todos, aos inválidos, infelizes, ausentes, estrangeiros, deficientes emocionais. Qualquer ser humano exterior ao núcleo da minha mãe é contemplado pela sua atenção desmesurada, pela sua bondade, ela que é pródiga em bons conselhos, ideias e esquemas de sobrevivência. Ela que se droga com anti-depressivas desde que me lembro – pequenas caixinhas de cartão com letras a vermelho na mesa de cabeceira.

(Muda de tom de voz e teatral diz em tom de ameaçador)


Não mexas aí, nunca mexas nos meus comprimidos.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

o cristiano ronaldo que há por aqui

- Mãe, quando eu for um craque da bola, tu és a minha manager. Vai ser muito giro, quando me perguntarem alguma coisa eu vou dizer: têm de falar com a minha mãe. Como hoje. Fica tudo igual.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Lucrécia em Santarém

A senhora com os olhos azuis luminosos sentou-se mesmo à minha frente e sorriu. Sorri-lhe de volta e houve uma pausa. Era o meio da tarde, ainda não tinha provada os celeste, os doces da região, e senti-me numa enorme paz dentro dos olhos da senhora que se disse chamar Lucrécia. Quando cheguei a Lisboa chovia muito. Foi um dia bom.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Às vezes um cheiro



Eu até podia ter seguido sem ver, ter ido por outro lado, o corpo a desviar-se, os olhos no chão, o lambril do passeio e o alcatrão incerto da estrada, o ruído dos automóveis a fugir e eu, cuidadoso, a atravessar a rua, a perder a oportunidade. Seguiria sem novidades, uma repetição de gestos que garantiriam o exercício de uma pretensa vida. Calcorrear a rua até ao número 87, subir ao terceiro andar, ocupar a minha secretária, abrir o computador, atender o telefone, tomar nota, registar o correio, responder e anuir. Sobretudo, anuir. Regressaria depois à rua para o almoço, um croquete de berbigão, um brigadeiro pecaminoso coberto de pepitas delicadas de chocolate, trincas pequenas para fazer durar. Por capricho. A voz do médico a dizer

Tem de controlar o colestrol. Evite os fritos.

O sem abrigo não me olhou, não parou, não falou sequer. Limitou-se a avançar pelo passeio, lenta e penosamente, e eu senti de imediato o cheiro, um rasto poderoso, inesperado. Um toque de almíscar. Um vento forte de madeira de ébano. Foi uma tentação segui-lo, curvado, escondido nas roupas escuras. Estava nisto, na perseguição do cheiro, quando o sem abrigo, por fim, estacou e olhou para trás; a percepção de não estar sozinho naqueles passos. E foi nessa altura que realmente vislumbrei a hipótese de fuga, o tal atravessar a estrada, evitar os carros na avenida, uma buzina a avisar, um rosto na janela a insultar-me

Vê por onde andas, palhaço.

Aguentei o olhar baço, a hesitação do corpo, os botões mal abotoados do casaco de inverno. Fiquei preso no cheiro. Não tenho vergonha de o dizer. Terra fresca, um avinagrado ligeiro. Uma cápsula de odor encheu-me os pulmões. Cerrei os olhos e aspirei com força. O sem abrigo manteve-se. Uma pose fora do contexto. Um retrato dos dois na rua seria, calculo, um momento raro na azáfama da cidade. Fora de tudo, de mim e de ele e da vida. Na montra, perto de mim, mesmo aqui ao lado, pressenti um olhar incrédulo. Abri os olhos e mantive-os nos dele. Lentamente, a mão rugosa, velha, castanha, deslizou para o bolso do sobretudo. Estendeu-ma com cuidado e, nesse movimento em direcção a mim, a mão abriu-se e vi uma quantidade enorme de papéis brancos, cortados fininhos, como uma massa.

São da perfumaria. Trazem perfume. É bom para tomar banho.

Ficámos os dois a olhar aqueles tesouros de olfacto no mar fechado da mão. Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Ouvi a voz do meu filho mais velho

Já passou, já passou.

O sem abrigo recolheu a mão. Hesitou. Avançou para mim e entregou-me os papelinhos da perfumaria, o mostruário de cheiros que me fizeram, por fim, acreditar na tua partida. Agradeci a oferta com um gesto de cabeça e o homem afastou-se, por fim, com a dignidade de um gesto grandioso, com a superioridade de um sofrimento menor que o meu. Na rua, em pleno Porto, a ver as obras e o metropolitano a passar à superfície, o rio que se adivinha, cheirei o fim do meu mundo. Nunca mais serei feliz. Não porque não queira. Porque não posso. Porque as tirinhas de papel que guardam a tua essência se vão perder com o tempo e eu com elas. É uma decisão esta que tomo aqui. Hoje não volto para casa. Hoje vou ficar na rua. Amanhã roubarei a alguém a comida que afastará a fome. Depois de amanhã vestirei um casaco castanho demasiado grande. Para o mês que vem já não saberei quem sou. Daqui a um ano o sem abrigo sou eu. Não é culpa tua, não penses. É apenas uma opção. Entre estar na vida sem ti e estar na rua, atirado à descrença de todos os princípios civilizacionais, prefiro aguardar a caridade da menina da perfumaria que, quem sabe?, um dia me oferecerá papelinhos de cheiro para afastar todo o mal que se acumula em mim. Nesse dia sorrirei. E só nesse dia. Diz aos meus filhos que o pai se perdeu. Manda dizer uma missa por mim. Não penses sequer em voltar. Não estou à tua espera.

domingo, 19 de outubro de 2008

calorias felizes

Vamos sair agora para comer gelados. Aqui do outro lado da rua. Um de chocolate. Outro de canela, outro de nata e um de caipirinha. Serei eu a precisar de álcool? Calorias felizes apesar da falência do corpo. Digo eu.

sábado, 18 de outubro de 2008

os amigos

Os amigos são o melhor do mundo.
Dão abraços.
Mandam mensagens.
Gostam de nós.

Isso deveria bastar, não é?

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Decisões a meio da tarde

Não subir o tom de voz. Não suspirar. Não me queixar. Não disfarçar a dor. Pedir ajuda. Evitar fazer quatro coisas ao mesmo tempo. Não gerir o tempo dos outros na medida do meu. Não controlar nada nem ninguém, as coisas aparecem feitas na mesma. Ter tempo para não fazer nada. Estar apenas. A vegetar. Ser um bróculo por momentos, ser um molho de bróculos e curtir a minha dimensão esverdeada. Não fazer planos. Esquecer-me das horas. Chegar atrasada como todos os portugueses. Culpar alguém que não eu mesma. Deixar cair a bitola de excelência que inventei que inventaram para eu alcançar. Mandar tudo às urtigas. Prolongar os abraços com o meu marido pela simples necessidade de ser abraçada. Ir ao cabeleireiro ler revistas sobre o Cristiano Ronaldo e saber tudo sobre a vida de José Castelo Branco. Deixar de ter um blog diário. Aceitar com generosidade o excesso de advérbios de modo e duplas negativas, há coisas contra as quais não vale a pena combater. Ignorar as segundas-feiras. Dar os relógios todos. Nunca mais pagar impostos. Fazer viagens de 15 dias a cada três meses. Dizer que não. Dizer que agora não posso. Deixar de pensar na falência do corpo, na pele seca, nas gorduras, nas coisas óbvias dessa doença degenerativa que é vida. Não ir ao dentista. Não tomar comprimidos. Acreditar em algo melhor todos os dias. Não dizer sempre as mesmas coisas: tira os pés daí, fecha a boca enquanto comes, vai estudar, lava o aparelho, estou a falar não me interrompas, faço já, desculpa não comprei, sim, estou a ir. Chorar mais vezes. Publicar isto e depois pensar que sou apenas patética e, depois, isso não ter qualquer importância.