terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Crónica

São milhares de páginas. São quatro anos de coisas acumuladas num julgamento em que ninguém acredita. A tal cegueira da justiça. Olhe que eu sei do que falo. Sou um funcionário menor do tribunal, mas sei muito. Não vai acontecer nada de especial, posso garantir. Tanta expectativa e investigação e depois a montanha pariu um rato? Claro, claro, somos um país de brandos costumes, não é o que se diz? Esta coisa de terem prendido um banqueiro é só fogo de vista, sabe-se lá o que escondem com isto. Não, eu não acredito na justiça.
Faço o meu trabalho, transcrições atrás de transcrições. Consigo detectar imprecisões com mais justiça que os advogados ou procuradores. Tenho o ouvido treinado. Só pelo tom de voz consigo saber se uma pessoa é culpada, se está a mentir, se esconde alguma coisa. Consigo detectar o choro segundos antes dele acontecer. Entre um polígrafo e as minhas capacidades, confio em mim. Claro que não desvendo nada disto, para quê? A quem? A justiça neste país sofre de um excesso de hierarquia e de funcionalismo público no pior sentido. Vou andando por aqui e colecciono coisas. Um dia escreverei um livro. Será um escândalo ou talvez não. Uma coisa é certa, terá sangue, sexo e corrupção em quantidades tais que fará as delícias dos mais sedentos. Aquelas séries de televisão sobre os meandros da justiça estão noutra dimensão, não reflectem nada do que aqui se passa. Veja o caso Casa Pia, um caso que eu conheço bem. Não dava uma série de televisão, dava várias, mas simplificar tudo para o espectador seria uma tarefa impossível. Ninguém imagina. Quando tudo estiver terminado, acredito que não fará diferença. Todos os dias vejo casos novos de violência sexual. Chegam a tribunal como pães quentes acabados de tirar do forno. Nós já gozámos, é a dose diária a que temos direito. Por mais que se imagine, nunca se sabe exactamente o que é uma criança vítima de abusos até a ouvir falar sobre as suas experiências. Eu faço transcrições desses depoimentos. Tenho chorado muito. Já cheguei a vomitar. Acreditar na justiça? Nem por isso.

(Crónica publicada no Semanário Económico de 20 de Dezembro de 2008)