sábado, 27 de dezembro de 2008

Cata com dias de atraso

Caro Manuel
Escrevo-lhe da praça do Muro das Lamentações em Jerusalém. Perdoe-me. Não estarei para a Consoada. Agradeço-lhe o convite, sabe que sim, sei que não se esquece de mim. Devo ser uma espécie de sem-abrigo afectivo na sua vida, condição altamente recomendável para um viúvo e, sabendo que não desdenho as fatias paridas e o bacalhau com couves da nossa Cecília, a verdade é que fugi dessa coisa natalícia, artificial e luzente que não compreendo. Ou já não compreendo.
Tempos houve que saía de casa para ver as luzes na avenida, espreitar as decorações, o cheiro do frio de Dezembro, a conversa das prendas e toda a organização das festas. Fazia o presépio no primeiro domingo de Dezembro. Fazia-o com cuidado, comprava musgo na florista, desvendava cada figura guardada em papel de jornal, conseguia algumas diferenças na composição de ano para ano, mas coisa pouca.
Não tenho força para nada disso, descer à arrecadação, procurar os enfeites de natal e viver esse momento, julgo ter perdido o sentido da vida, de estar e ser com os outros. Respiro apenas, meu amigo. Respiro e o coração bate sem emoção. Isto não é vida. É outra coisa. Quando comecei a ver o carro carregado com as iluminações, as gruas e os homens a preparem o natal, percebi que não conseguiria ficar indiferente.
Como uma espécie de tortura, optei por viajar e escolhi, de todos os lugares do mundo, imagine, Israel. E agora aqui estou no lugar fundador de tudo, na estranheza desse princípio que está no nosso código genético, no nosso imaginário.
Está frio, sabe, que entra nos ossos. Talvez seja apenas a velhice. Digo-lhe que isto do frio é muito limitador. Ando pelas ruas a esfregar as mãos. Fiz o percurso dos tristes, desses turistas que surgem com guias a debitar informação, guarda-chuvas erguidos como uma placa sinalizadora de presença, americanos lamentavelmente ruidosos, nipónicos sem expressão, grupos de peregrinos italianos que murmuram orações enquanto fazem a Via Sacra.
Vou, sem destino, como uma sombra na perseguição dos outros. Tenho no quarto de hotel um guia, o melhor, o American Express; páginas repletas de informações sucintas, apenas o essencial. Ainda não o abri. Penso que não quero saber. A história, as religiões monoteístas, os monumentos. Nada disso me interessa.
Ando pelas ruas há dois dias. A velha cidade de Jerusalém é maior do que a China. Parece-me diferente todos os dias, como um mar atormentado que se transfigura num espelho de acalmia para depois voltar a uma certa fúria. Do bairro judeu ao árabe, a fronteira desenha-se na pedra, nos cheiros, na arrumação que se opõe ao caos de uma espécie de souk. Fascina-me esta divisão. A ordem e limpeza dos judeus são admiráveis e, talvez não me faça compreender como gostaria, caro Manuel, mas a verdade é que é um pouco assustador.
Passei há pouco o detector de metais para chegar aqui, ao Muro das Lamentações. Descobri ontem que estou contra a minha educação, as minhas raízes. Não sinto qualquer comoção no Santo Sepulcro. Devo ser um mau cristão. Sempre suspeitei ser um pobre cristão, indigno e fatalmente obtuso para os mistérios maiores. Aqui, no Muro, sento-me numa cadeira de plástico, no lado reservado aos homens, e consigo ouvir as mulheres do outro lado, mulheres que de pé se encostam ao muro e rezam alto, como uma cantilena, um choro triste e repetido. Deus abandonou-nos. Estamos sozinhos. Ele não está no muro, na igreja, na mesquita. Escapou-nos. Há quanto tempo? Desde sempre, parece-me.
Não o quero ofender, Manuel, sei da sua devoção. Perdoe este seu amigo. Li algures que nada mata mais do que a solidão, sobretudo se estamos mesmo sozinhos. Talvez esteja aquém da salvação, do entendimento, de uma ideia melhor. Terá Deus um propósito específico para mim? Sim, sei que devo acreditar na Sua bondade. Um dia talvez O reencontre.
Decidi agora que não lhe mandarei esta carta, meu amigo, vou deixá-la numa fresta do Muro das Lamentações, numa pequena reentrância entre pedras de outra memória, a sua carta e milhares de orações, pedidos, agradecimentos que só consigo imaginar com enorme esforço.
Desejo-lhe um Santo Natal.
Um abraço,
Eduardo

(conto publicado no suplemento de natal do jornal do Fundão)