Deus combinou encontrar-se comigo às três da tarde na Brasileira, junto à estátua do Senhor Pessoa, esse que o Governo não pretende engrandecer com potencialidades nacionais. Quando cheguei já tinha um croissant com doce de ovo pela metade e uma meia de leite salpicada de migalhas. Não soube dizer se estava bem ou mal disposto. Cumprimentou-me com um aceno de cabeça e percebi que deveria sentar-me.
Ficámos em silêncio por instantes até que encolheu os ombros a incentivar-me. Deus tinha aberto o expediente para me ouvir, não me fiz por isso rogado e, sem culpa ou pudor, desfiei o rosário das minhas misérias.
Apresentei-lhe os factos: o funcionamento do banco, os favores que prestou e a quem ao longo dos anos, os investimentos e a fraca perspectiva de sobrevivência face ao panorama actual, os clientes a retirar contas, outros a telefonar com insistências e perguntas impossíveis de responder. Deus foi comendo e abanando a cabeça em gestos divinos, decerto, mas que não almejei decifrar. Bebericou a meia de leite que disparava na atmosfera do Chiado um cheiro enjoativo que me revoltava, no estômago, o conteúdo parco do almoço já esquecido. Por fim, Deus disse:
- Vais então recorrer às verbas do Estado?
- Não tenho outra hipótese. O Primeiro Ministro disponibilizou as verbas, é preciso aproveitar.
- Sócrates, não é?
- Sim. Lá fora, noutros países, está a suceder o mesmo. Tal e qual.
- Mas isso pouco te importa, não é verdade? Tens de te salvar.
- Gostaria.
Deus pareceu meditar nesta questão da salvação e eu fiquei mais uma vez calado. Por fim, disse-me a meia voz que ia ver o que podia fazer por mim e acenou em despedida. Apressei-me a partir, largando um “boa tarde” que me pareceu um pouco desnecessário, mas educado.
Reparei que junto à montra do “Paris em Lisboa” estava um outro administrador de banco privado e que a subir a rua Garrett um Jaguar deixava um presidente de conselho de administração de uma outra instituição bancária. Senti-me menos só.
Deus era um homem ocupado esta tarde.
(crónica publicada no Semanário Económico a 13 de Dezembro de 2008)
Figueira da Foz, 5 de Março
Há 15 anos