quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

carta a um amigo do outro lado do Atlântico


Lisboa está quase adormecida, há um silêncio transformador que me permite, por fim, escrever. Na quinta feira da semana passada fiz uma intervenção cirúrgica, anestesia em forma de epidural, internamento, dores, pensos, drenos, comprimidos. Vou-te contar: na mesa do bloco operatório (nunca percebi porque se diz mesa e não cama, cama metálica, por exemplo, ou cama estreita de metal ou cama para intervenções ou cama médica) tive um ataque de riso. As lágrimas escorriam dos meus olhos. O médico contou uma anedota: uma loira está grávida e pergunta solene: será meu? Eu a rir muito e as enfermeiras a preparar coisas (não vou definir as coisas porque não posso, não sei e é um pouco assustador ainda agora). De repente, o anestesista diz: temos 18/6 de tensão. Há um rodopio à minha volta e eu ainda tenho a imagem da loira burra a filosofar sobre a maternidade do seu rebento. Pouco me importa que a minha tensão arterial esteja a subir ao evareste. Nada disso é interessante.

Outras coisas: estou nua, claro. E tenho do meu corpo a percepção da idade. As mulheres têm isso, sabes? A ideia do corpo e da idade num novelo de fios complexos que só podem ser tecidos com nostalgia. Ora o meu é como um mapa de vida: a cicatriz no joelho quando caí na ilha da madeira, aos nove anos, no dia em que me apareceu a menstruação; a nódoa negra que fiz pouco antes por ter batido na mesa da cozinha; as duas cicatrizes das cesarianas, duas linhas que simbolizam o meu toque de Deus; uma série de sinais que têm surgido do nada, como uma chuva de tinta que fica em mim e que revela o meu tempo, o tempo do meu corpo. Estava eu nesta contabilidade quando a máquina apitou e julguei que o Dr House ia entrar a coxear para me salvar com uma teoria qualquer que tem a ver com fungo no pão ou coisa que o valha (sabes a série Dr House?). Enfim, depois cai num torpor qualquer e adormeci. Lembro-me de ter um frio terrivel, um frio dentro do frio. A enfermeira resolveu um assunto, achou ela, com uma manta metálica e um tubo que foi colocado debaixo da manta. Do tubo vinha um calor constante, era um tubo de escape para cima de mim, do meu corpo, o tal corpo. O único som que havia na sala era o dos meus dentes a bater. Apesar da manta futurista e espacial, do tubo quente. Pensei se tinha dores e concluí que só frio, porque até o corpo eu não sentia. Estava belo adormecido, o meu corpo. Quando cheguei ao quarto estava vazio. A enfermeira riu-se, passou-me a mão no cabelo, perguntou se precisava de alguma coisa, ajeitou-me como uma mãe e deu-me o telemóvel para falar ao meu marido. Foi o que ela disse: para falar ao seu marido. E eu, obediente, claro, liguei, o corpo ainda por acordar. Ficou perplexo o meu marido, a meio do seu jantar. Estava a contar comigo mais tarde. Tinham-lhe dito para voltar mais tarde. Fiquei ali no escuro do quarto. Quando ele chegou, por fim, pouco tempo depois, eu continuava a tremer e comecei a chorar. Antes, porém, num sentido prático absurdo mandei uma série de mensagens escritas a dizer que estava óptima, que tudo tinha corrido bem. Não sentia nada. Quando ele chegou senti medo e chorei. Chorei durante muito tempo e adormeci a chorar, com frio e medo. Isto foi o dia da operação.
Faz hoje uma semana. Depois te conto o resto. Perdi a força para escrever.
(imagem Homerv)

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