Para o Elvis
Não consigo ver nada, só sinto os solavancos. Ficar com os olhos abertos faz-me muito medo, medo do escuro. Assim, tenho os olhos fechados, sentindo cada pára-arranca do carro, o meu suor na testa, a boca seca. Penso que não vou sobreviver a isto. Quando o carro parar de vez, o meu coração não irá aguentar e vai disparar, rápido, rasgando a pele do meu corpo, trespassando todos os meus órgãos, um coração aos pulos, a correr, desenfreado, sem dono. Vai ser assim: a porta da bagageira do carro abre-se e o meu corpo vai sofrer o choque de não sobreviver ao coração que se dispara como uma arma letal. Vou morrer antes que me matem. Agora, sempre que sinto o carro abrandar, penso. Sinto-me a pensar, oiço-me a pensar
É desta, eles vêm aí.
O bar tinha aquela luz de bar e a música não se identificava. Ela até disse que o lounge era como a antiga música de elevador. Eu não percebi bem o que é que isso quer dizer, mas fiquei calado, porque gostava de a ver dizer estas coisas, o cabelo nos ombros como cortinas de um palco, o azul dos olhos a brilhar debaixo do rimel preto, preto em excesso. Não havia nenhuma história ali. Eu sabia que nunca teria hipóteses de fazer nada com ela. Estava, digamos, a guardá-la. Não como guarda-costas, mas como um fiel depositário das jóias alheias, como aqueles senhores de cabelo branco nos bancos que nos levam, em secretismo, para a zona dos cofres e nos deitam um olhar cúmplice quando se retiram e dizem
Esteja à vontade.
Eu devia dinheiro ao dono da jóia. Quer dizer, eu devia dinheiro ao casino, à minha senhoria, aos meus pais, aos meus vizinhos do 3 C, à idiota da Clarinha, tão boazinha, que me sorria constantemente, como se fosse uma fotografia. Dever dinheiro é a minha especialidade. Há anos. É como fazer bolas de fumo com o cigarro. Comecei aos 13 e nunca mais consegui parar. Mesmo quando não jogo, perco dinheiro. Às vezes acho que basta respirar para dever dinheiro a alguém.
Seja como for, o chefe - o man, o tipo, o gajo, o big boss - tinha-me dito que não era preciso pagar já, bastava ir pagando, fazendo uns trabalhinhos. E foi então que comecei a fazer de motorista para levar a menina aqui e ali, um café, um cinema, um jantar, uma festa onde ela aparecia para o fazer sentir mais importante. Ela com o cabelo loiro, como seria de esperar. Ele bossal, como todos os outros do gang, umas figuras de banda desenhada, em roxo e verde, com rostos disformes, sem bondade nenhuma. A ausência do Bom nas personagens afligia a minha alma cristã, mas aguentava os trabalhos porque devia e quem deve sempre teme, não é?
Até as vozes me assustavam por falta de humanidade. Conseguia vê-los ao longe, sem piedade, a rir e a beber, às vezes olhando para mim como quem diz
Pobre desgraçado.
A opção vitimizante é preciosa. Descobri isso muito cedo, quase tão cedo quanto às argolas de fumo. Há que adoptar toda uma postura corporal que descai, que nos arrasta para os contornos menos simpáticos da depressão. Antes de falarmos já somos a expressão viva do desgosto, da incapacidade, do falhanço. Tudo isto se cultiva. Com tempo e afinco, como quem estuda um papel a cumprir, uma representação que vai durar a vida inteira. Não há esboços de risos e vitórias, momentos preciosos tipo anúncio de telemóvel onde – imagino agora – podia cair nos braços da loira e os lábios dela colarem-se nos meus
Segue o que sentes.
Seja como for, esta minha atitude de desgraçado foi o que me safou. Devo dinheiro, muito dinheiro, e podia ter morrido ali, no dia da 13ª colecta, quando os mafiosos me atiraram para o chão e o caixote do lixo rolou para cima das minhas calças deixando um rasto de tomate e esparguete, jornais e coisas amarelas por identificar. A minha total falta de vocação para o sucesso implicou um perdão implícito
Nem para matar serves.
Quando a loira me olhou e disse que ia à casa de banho, naquela noite, naquele bar, com aquela música, não suspeitei de nada, não emiti um som. Fiquei sentado a ver as luzes a mudar de azul para rosa, de amarelo para verde, os corpos a estenderem-se uns sobre os outros com o álcool a fazer de edredão à realidade. Quando dei por mim já tinham passado quatro ou cinco músicas daquelas que não começam, vão apenas mudando de repente. Olhei para os lados da casa de banho e ela nada. Eu não sou de tomar decisões, mas senti uma borboleta, vaga, pequenina, no estômago e quase que corri para a porta de vidro martelado
Estás aí?
Nada. Um silêncio no meio daquela música, daquele fumo de luzes. Entrei. No chão, perto do lavatório futurista, a minha jóia, a menina dele, do chefe, tinha as pernas abertas e um tiro na cabeça. O vestido branco estava rasgado e cheio de sangue, as tripas de fora. Fiquei a olhar para aquilo e sabem quando vimos a nossa vida desenrolar-se em frente aos nossos olhos? Pois foi mesmo assim, porque eu soube de imediato que não tinha hipótese nenhuma, que desta vez não valia a pena ter aquele ar
Pobre desgraçado
Aquele momento durou o que durou, o telemóvel dela tocou na mala de missangas cor-de-rosa e eu, estúpido, atendi. Antes de perceber exactamente o que me ia acontecer, obedeci. Fechei a porta da casa de banho e sentei-me à espera que eles chegassem. Não sei como é que tiraram o corpo dela do bar, nem reparei. Sei apenas que me ataram as mãos e os pés e me despejaram na bagageira do carro. Disseram-me
A tipa tinha um diamante no estômago, o maior diamante angolano dos últimos 20 anos. Só tinhas que olhar por ela.
Eu, sem saber, gaguejando, cumprindo o costume, dizendo o costume
Eu pago, eu prometo que pago.
Os risos deles ficaram lá fora e eu aqui na mala do carro com cheiro a gasolina. Ainda pensei que seria horrível ter de chafurdar no sangue para procurar um diamante. Mas não era nada comigo, pois não?
Quando a porta se abrir, já decidi, o meu coração vai-me matar. Vai ser lindo. Se eu soubesse que a tipa tinha um diamante na barriga, eu mesmo tinha procedido à cesariana.
Um diamante, o maior diamante do mundo. Francamente. Há coisas muito injustas.
(ilustrações de Rodrigo Prazeres Saias que tem um blogue activo muito bom)