terça-feira, 18 de novembro de 2008

Comi-o

Foi em simultâneo: Rodrigo apareceu no topo das escadas volantes, transportado abruptamente para o piso onde o irmão, Tomás e Sara o esperavam; o telemóvel tocou, no visor viu o nome de Lila, sentiu a garganta a secar, a secar como se fosse um deserto, o sexo murcho, a incapacidade total de reagir, mexer, pensar, confirmar ou desmentir a sua pulhice perante o mundo. Era um daqueles momentos em que um homem vê a sua morte, vê o segundo antes da morte. Sara sorriu estonteante durante um momento, depois, rápida, viu o olhar de Rodrigo, o telemóvel a piscar, aquela luz azulada, e o Tomás a perguntar:

Então maninho, estás feliz por nos ver? Feliz aniversário.

Sara, a que já viveu tudo, esmoreceu, as mãos cerradas nos bolsos da gabardine branca, uma pele a saltar junto à unha do polegar direito, um tique nervoso.
Rodrigo mudo, ali no topo das escadas rolantes, já com os pés parados no piso da cafetaria do museu, sem reparar no embaraço de quem queria abandonar as escadas

Dá-me licença?

Desculpe.

As pessoas a atropelarem-no, a passarem por cima dele, a olhar incrédulas, a pensar

Que estúpido

Por amor de Deus


E o Tomás, sem perceber, à espera do tal abraço. Sara a meter-se para dentro, sem voz, aos berros consigo

O que é que eu estou aqui a fazer?


A mão a deslocar-se da gabardine para alcançar o braço de Tomás, a pele ainda espetada, um pronúncio de sangue

Tomás, isto afinal não foi boa ideia.


O quê? Então, não é todos os dias que se fazem 40 anos? Não é Rodrigo? Viemos os dois a Paris ter contigo para que possas reflectir sobre a entrada na meia idade.

Tomás a rir, puxou o irmão, deu-lhe um abraço. Rodrigo atendeu o telemóvel e as suas primeiras palavras foram

Estou? Sim, Lila… Não. O meu irmão chegou agora. Para me fazer uma surpresa. Não, veio com uma amiga.

Sara olhava-o fixamente, como um farol avariado, a luz a penetrar apenas naquele ponto onde Rodrigo devia ter alma, onde Deus errou no projecto humano. Percebeu naquele momento que não havia nenhuma hipótese de fuga, de salvação. O mal estava feito. Era preciso viver com o mal.

Diz-lhe que jantamos todos juntos.

O quê?

Rodrigo, branco, a transpirar na testa, numa gota rebelde que descia da orelha para o pescoço, para a camisa azul oxford sem gravata, Rodrigo a ver onde a coisa podia piorar e Sara a insistir


Diz-lhe que jantamos todos, é o teu aniversário.

Tomás riu-se e disse que tinha fome, enfiou a mão no braço de Sara, virou-a em direcção à cafetaria do museu, já a bendizer as wrapp de salmão com abacate e o maravilhoso sumo de ananás com hortelã, tudo isto seguido de um maravilhoso crème brulée, bem queimado. Sara ouviu Rodrigo suspirar, gemer, continuando ao telefone, a explicar, a organizar eficazmente o seu cenário.

Um impostor. Sou um impostor.

Sara viu o menu com cuidado, as unhas impecáveis, o polegar escondido na palma da mão, dobrado para que o sangue não se confunda com dor ou castigo. Pede um chã, Lapsong Suchang, escolhe pelo nome, porque lhe soa bem, faz lembrar coisas do Oriente e ela acredita que se se rodear de calma, não enfiará o garfo de design moderno na mão do Rodrigo, na perna, no pescoço. Ele senta-se, o telemóvel na mão, o gesto do desligar quase pesaroso.

Não estás nada contente por nos ver, Rodrigo.

Não, não é isso, é só… bem a Lilla tinha planos e…

Não queremos estragar os planos, mas jantamos todos e amanhã já cá não estamos, maninho.


Tomás enche a boca com comida e sorri. Sara não aguenta e dispara

Desculpa lá, diz-me o que é que se passa. Ainda andas com a Lilla?

Não…

Não? Explica-me lá. Tu já não andas com ela, mas continuas a comê-la e portanto ela tem a ilusão de que anda contigo. É isso, não é?

Rodrigo considerou as alternativas, a possibilidade de converter a situação a favor dele e dele apenas, mas Sara não lho permitiu. Ficou a olhá-lo com a dureza da verdade e ele nem respondeu, porque já nem fazia sentido.
Uma semana antes, no aeroporto da Portela, aos beijos, com a mala a desfalecer no chão, o casaco pendurado, ainda se lembrava do corpo dela, um corpo de rebuçado.

Sara, Sara, onde andaste tu toda a minha vida?

E ela a rir, o cabelo revolto, sem maquilhagem, uma felicidade feita de sexo e cream crakers com doce de morango. Um fim de semana sem colocarem os pés na rua, a ouvirem música, a tomarem banho, a viver para dentro.

Devíamos ter feito isto antes.


Antes?

Sim, quando estavámos no liceu, antes de ires viver para Paris. Antes.

Rodrigo concordava e lambia-lhe as pontas dos dedos. Gostava dela assim. Sara, a despida. Não o assustava quando se reduzia a esse papel de menina que se submete, que enrola a ponta do lençol com os dedos, que se ri com a boca escancarada, pouco civilizada, nada educada. Sara, a descarada.
Dentro de casa, era calmo. Era fácil. Rodrigo não lhe podia dizer que perante os outros, em sociedade, não aguentava a forma desprendida como ela emitia opiniões, debatendo com igualdade masculinas as coisas da política e da economia, do mundo e da metafísica, com propriedade, sustento e teoria. Tomás ria-se, ria-se sempre, na cumplicidade, na vontade de a ouvir falar, de a ver reduzir a tremoços as questões mais relevantes do mundo.
Tomás, o irmão errado, a versão perfeita de Rodrigo. Sara não percebia nada disso, não tinha como. Tomás era como um irmão de sangue, desses com quem cortamos os dedos em miúdos, analisamos o sexo e fumamos os primeiros cigarros: um amigo científico, nada que se compare com um homem. Rodrigo tentava exercitar a memória. Quando é que a imagem de Sara disparara na sua direcção?
Era uma festa de anos qualquer. Não, era um casamento. Ele já feliz de álcool, ela muito elegante, Gerard Darel dos pés à cabeça, umas sandálias douradas com tiras na barriga da perna e um conjunto de sinais – três – a decorar-lhe a curva do joelho. Sara sentada e ele a olhar os sinais, com afinco, com deleite, amorosamente.

Não sou só para olhar.


Era a forma dela falar, aquela coisa directa, sem rodeios, aquela maneira de deixar os homens a olhar, os olhos húmidos, os seios espetados, a magreza dos braços, o pescoço, eterno. Naquela noite, depois da música, ela contou que tinha ido pôr umas maminhas. Disse-o com naturalidade, disse-o para o picar.

Queria sentir-me uma pornostar.

Ali com a vista sobre os três sinais a namorar o joelho, Rodrigo considerou a hipótese teórica de um filme pornográfico com Sara. A boca dela próxima da camera de filmar, as pernas abertas, de rabo para cima. Sem ousar contrariar a imaginação deixou-se ir. E, por fim na cama, revelou-se uma princesa. Nada semelhante a Lilla, nada semelhante a nada. Depois do sexo Sara ainda tinha um perfume estranho, um pouco azedo, que se instalava no pescoço, nas axilas, nas pontas dos dedos.

Não é perfume, é só o cheiro a sexo, ao nosso sexo.

Ao nosso sexo?

Sim, quando fomos um.

Para onde fora a rapariga da língua solta, os palavrões, os beijos no carro, a mão na braguilha, o pedido entre dentes

Agora, agora.


No fim, Sara despiu-se e ficou apenas a princesa.
Como é que se destrona uma princesa? Como é que se lida com a realeza? Os caminhos estranhos entre Lisboa e Paris passaram a ser volumes pesados de mentiras. Rodrigo mentia a Lilla, a namorada na cidade-luz, a Sara, a namorada na cidade-branca. Demasiada claridade faz mal. Confidenciou a Tomás o deserto e castigo em que se enterrara, a divisão, a impossibilidade de colocar uma ou outra fora da sua vida.

Rodrigo, as mulheres não são manipulações abstratas, são de carne e osso e têm sentimentos. Vais-te foder.

O mesmo Tomás que tinha passeado junto ao Arco do Triunfo a ouvir a pequena Lilla dissertar sobre o trabalho colossal de introduzir dados no computador para produzir jogos de lógica. Lilla com o rosto pequeno, moreno, o corpo encolhido na roupa sem graça, dois percings, 25 anos, talvez. Rodrigo ainda tentou evitar a conversa, evitar o encontro, contudo o irmão era demasiado batido nos esquemas e nas mentiras. Queria ver onde estava a divisão. Gostava de Sara, podia gostar de Lilla, mas tinha de ver.
Lilla não passou no teste, pouco importa. Rodrigo percebeu e, uma semana depois, por sms avisou o irmão que estava tudo terminado. Nessa altura, Sara já sabia tudo. Tomás era a lealdade em pessoa. Não lhe passou pela cabeça a possibilidade do silêncio.
Sara foi implacável. Dura. Não acreditava no amor, dizia com indiferença.

Podemos estar juntos e nada mais. Tu és só mais um homem.

Rodrigo sentiu-se violado na sua masculinidade, na sua pretensa sensibilidade, preferia que ela berrasse, que lhe batesse. Sara, a princesa, tinha escolhido ser Sara, a realista. Nada de fitas, nada de amuos. Rodrigo disse que não acreditava em relações à distância.

Eu não acredito em mentiras, Rodrigo.

Para redenção de todos os pecados, Rodrigo telefonava, mandava entregar flores, escrevia sms em português e em inglês. Vinha a Lisboa e aterrava na cama de Sara, uma cama de dois metros com 25 centímetros de rio Tejo, uma pequena benção.
Foi assim durante meses. Até que Tomás telefonou.

O maninho faz 40 anos para a semana, vamos a Paris fazer-lhe uma surpresa?

Sara preparou a mala com cuidado. Escolheu a lingerie, a maquilhagem, os saltos altos. Comprou-lhe uma pulseira van Dihn, discreta, elegante. Como Rodrigo. Como a imagem que tinha de Rodrigo.

E agora estavam todos à mesa de um restaurante da moda em Paris, Sara, Tomás, Rodrigo e Lilla. Todos a falarem francês. Sara fez o seu número de princesa. Só vacilou quando Rodrigo deu a mão a Lilla. Sara pediu desculpa, foi à casa de banho e mandou uma sms

De mão dada, não aguento.

No fim, Lilla pagou o jantar e levou Rodrigo para uma noite de sexo frouxo, conforme vaticinaram Sara e Tomás, concordando que ainda precisavam de mais álcool.

Estou tão sozinha, Tomás.


Deitaram-se por volta das quatro da manhã. Sara tinha uma dor de cabeça, os olhos inchados de chorar. Tomás aflito de arrependimento.

Que ideia a minha.

Por volta das sete, alguém bateu à porta do quarto de Sara. Era Rodrigo. Ao pequeno-alomoço, Tomás ficou a saber de todos os pormenores.

E tu, o que fizeste?

Comi-o e e depois cuspi-o.