terça-feira, 8 de julho de 2008

Paraty 2008


Carlos Lyra passeia no jardim da pousada da Marquesa em Paraty com uns óculos de fino ouro amarelo, lentes lilás. Mais longe, junto ao quarto que gosto de pensar ser o número 13, o italiano Alessandro Baricco saí sem saber nada sobre a bossa nova. Cantarolei a "Minha Namorada" da autoria de Carlos, ninguém me ouviu, e depois ele seguiu ao encontro de Magda, a mulher. Ela tem uns cabelos com fios de prata e ri com facilidade. Ao fundo a Inês dava uma entrevista. Os rapazes estavam longe da vista: Agualusa escrevendo no quarto, Banza numa mesa da Flip com o meu crachá de entrada que ele adulterou por excesso de zelo (ninguém olha para os nomes), Viegas perdido algures a fumar uma cigarrilha, Ondjaki tinha regressado ao Rio de Janeiro por 24 horas, José Luís namorando as mulheres todas ou alguma em particular com aquela graça de menino que só ele tem. Saí da pousada e fiquei na praça matriz, ali engolida pela flipinha, os miúdos a brincar com as figuras do espírito santo, desenhos, flores e moinhos de ventos gigantes. No Coupé, café da esquina, depois do restaurante Bartolomeu, o empregado da esplanada corria. As mesas e as cadeiras à beira do colapso. O empregado chama-se Paulo. No interior, onde só se pode estar quando as ventoinhas do tecto estão desligadas, está a Paulinha, uma negra cheia de carnes luzidias, sorriso largo e dentes sobrepostos. Peço açaí e penso em Djavan por existir aquela ponte de conhecimento, uma canção que fala de açai e que eu, por fim, sei o que é. Garantem-me que tem vitamina. Vem com um pacote de granulado, ou seja, cereais e há pedacinhos de banana misturados na mistura cor de terra. Como devagar. Está gelado. A fruta é batida com gelo. Dizem que tem propriedades milagrosas e eu, crente, derrotada na miséria de uma crise de infecções sucessivas, entrego-me ao ritual do açaí. Na praça as crianças pulam e, bem ao fundo, do outro lado do pequeno rio, sei que está a tenda gigante dos autores e toda a azáfama. Há quem vá ver o colombiano, o anormal, como lhe chamo (lamento, mas nem o nome dele consigo escrever). O homem que disse que Ingrid não deveria ter sido libertada; que tinha provocado o rapto. Dias depois, no jornal do Brasil, leio o relato sucinto de Ingrid sobre a rotina dos seis anos de cativeiro. Ela esclarece que há coisas que são dela, que não vai contar. No mundo longínquo da Flip, onde os editores bebem Maria Isabel em copos mínimos, fumam cigarrilhas e discutem pormenores de contratação, a Colômbia está longe, tão longe.
Como num quebra noz, sinto a minha cabeça explodir. Brain freeze. O meu marido tem por hábito avisar as crianças. Comam devagar. Está muito gelado. O meu marido não está aqui. Vejo passar a escritora nigeriana com o seu marido alto e esbranquiçado. É uma mulher bonita. Agualusa diz que talvez seja Nobel, um dia. Na mesa a que assisti ela disse que os escritores só têm um papel: escrever. E que só se pergunta aos escritores africanos se estes devem ter um papel denunciador. Agualusa mediou a mesa com sabedoria. Pepetela foi gentil, tranquilo, contou histórias de pessoas em guerra. Disse que só quem fez a guerra pode saber construir a paz. Fiquei a pensar naquilo. Vou lendo “Os Predadores”, o livro lançado agora no Brasil pela Língua Geral, a minha editora.
A Inês arrasa na mesa dela. O público está louco. Assina livros das nove e pouco da noite até às onze. Diz-me que o calo de escrita cresceu. Di-lo com um certo orgulho. Eduardo Coelho, o editor, o meu, aquele que importa, o da Língua Geral, combina almoçar comigo para vermos um original. Tem notas. É gentil. Tem sempre razão. Bebemos coca cola zero, almoçamos feijoada que não tem feijão. Seguimos para a praça.Viegas conta, pela terceira vez, a anedota sobre as pirâmides, essas putas. Rimos todos. É fácil rir. As conversas cruzam-se. Andamos às voltas na calçada tortuosa à procura de um cocktail especial numa casa privada. A casa não tem explicação, está numa outra dimensão e pouco importa, instalamo-nos no jardim e gozamos com as metáforas sexuais dos escritores: os mastros, os búzios, as velas que se agitam. Tiram-se fotografias. De regresso ao quarto há livros que se multiplicaram, jornais, a Inês à porta da pousada com Pepetela, a Inês a dizer que o seu livro é uma declaração de amor ao Brasil. Há ainda a Piauí e o João Moreira Salles que navega na piscina da pousada com um calção vermelho e o Plínio que me traz um abacate gigante. Apenas por ser a minha fruta predilecta. Apenas por estar doente. A Paulinha abraça-me. Vejo-a com a Connie na conversa e a minha cabeça permanece presa nas garras ferozes do quebra noz. Falta-me a minha casa. O meu marido. Os meus filhos. A Paulinha diz que é psicológico, que tenho alergia ao Brasil. Não é verdade, claro. Como o Pessoa estou pela verdade e pela aspirina. A Cecília, a minha querida editora em Lisboa, vai à farmácia, traz ajudantes em forma de comprimidos. Pergunta-me sempre: estás bem? Melhor? O dia do seu aniversário é passado na lancha de alguém que tem dinheiro para ter uma lancha. A Connie, generosa, faz questão. A Cecília merece. Merece muito. Há sashimi a bordo, contar-me-á mais tarde. Vamos às compras e perdemos a cabeça na Marco, Lab de Roupa com Elasticidade. No fim a moça diz que a loja vai abrir em Lisboa. A Cecília fica a repetir que a Maria João, a filha, ia adorar isto ou aquilo; ou que a Ana não usaria nada daquilo; ou ainda que o João, o marido, vai amar as t-shirts com motivos índios. Os dias correm ligeiros. É bom estar com pessoas de quem gostamos, de cheirar livros, ver autores que não conhecemos, descobrir. No dia da partida planto-me aos pés do pai da bossa nova. Foi um privilégio abraçar Carlos Lyra. Ficámos amigos instantâneos, como numa sopa rápida, moderna. A viagem para o Galeão, o aeroporto, encheu-me de cansaço. Dormi no avião e quando cheguei o meu marido deu-me um abraço do tamanho do mundo e umas flores lindas, brancas e lilases que cheiram àquela passagem do livro do Pepetela quando o Nacib namora a menina com nome de cantora francesa. De repente, tudo se toca. É bom voltar para casa.