quarta-feira, 9 de julho de 2008

Francisca ao colo




O homem chegava a casa todos os dias pelas cinco. Ela já sabia. Tinha um ritual dele que implicava um silêncio. A roupa, os sapatos, uma ida à casa de banho. Depois, mais descansado, o homem começava a falar com ela. Todas as frases tinham o seu nome:

- Francisca, você sabe...

- Francisca, vem cá...

- Francisca, tiveste um bom dia?

O homem sentava-se para trabalhar e Francisca ficava por ali. O silêncio era substituído pela música das teclas do computador. Francisca imaginava sinfonias a partir daquele som e apreciava com cuidado a dança dos dedos dele no teclado. Um bailado inesperado, os momentos de pausa, os dedos estendidos para um futuro feito de letras. Por vezes o homem parava para beber cerveja, para limpar os óculos, passar as mãos no cabelo. Francisca namorava-o sem alarido, numa contemplação que ela considerava ser sadia. O homem queixava-se de alergias, comichões, olhos inflamados, nariz a pingar. Um dia anunciou que ia ao médico. Francisca esperou pacientemente o seu regresso. Ele entrou em casa e disse

- Francisca, a nossa situação mudou, sou alérgico a gatos. Arranjei-te outro dono.

Francisca ouviu imóvel. Depois, rápida, pulou pela janela e desapareceu.
Ainda hoje o homem sonha com Francisca. Ela vem espreitá-lo à janela, noites longas de cigarros e sinfonias ao computador. Ele não suspeita que ela o vigia. Ela não desconfia dos sonhos dele. Uma gata não é apenas uma gata. Afinal.