terça-feira, 3 de março de 2009

Crónica: Portugal comprimido

Pareceu-lhe incrível que estivesse em plena consulta a citar uma entrevista que tinha acabado de ler na sala de espera. Uma sessão de 90 euros, para dizer apenas banalidades. Memorizava tudo o que lia nas revistas e depois debitava num arranjo floral de intenções e de trejeitos mais ou menos elegantes (que lhe pareciam mais ou menos elegantes). Deixava a cabeça ligeiramente inclinada para a esquerda como quem pede desculpa. Não era uma pose submissa, era apenas uma maneira de estar, de se fazer interessante. Tudo aquilo era uma forma de se transformar em alguém melhor: a consulta, o poder dizer que tinha um psicanalista, aquela hora roubada ao dia para se ouvir falar.
Era isso: ouvir-se falar.
Haverá certamente uma atitude terapêutica nessa enorme satisfação de ouvir alguém, mesmo alguém que debita uma vida inventada e copiada das revistas cor-de-rosa. Qual era o propósito de estar ali sentado a ouvi-la? Que resultados é que seriam de esperar? Lembrou-se dos cremes anti-celulíticos e esboçou um sorriso. Continuou a falar com aquele tom trágico, pensando que a psicanálise talvez tenha como objectivo eliminar 89% de casca de laranja, obtendo 67% de firmeza e elasticidade. Conseguia imaginar um anúncio, o consultório austero, quase sem mobília, um homem com óculos e, em letras vermelhas: “consulte-nos e perca esse peso a mais. A psicanálise ajuda”.
Algures lera que Portugal está, orgulhoso, no ranking dos países mais deprimidos. Os portugueses tomam comprimidos para acordar, para funcionar, para comer, para rir e chorar e, claro, para dormir. Ela não toma nada disso porque sabe que é meio espanhola, logo não será atingida pela depressão colectiva. Limita-se a ir ao psicanalista e sentir essa importância na sua vida social. Confere-lhe profundidade e dá-lhe mistério. Tem algum receio dos comprimidos. Uma vez experimentou uns comprimidos muito brancos, muito redondinhos e só teve vontade de chorar. Prefere inventar-se e contar mentiras. São uma espécie de vida.

(crónica publicada no Semanário Econónomico no dia 28 de Fevereiro de 2009)