segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Eu vou já para casa

Quando voltei para casa, nesse mesmo dia, ela arrastou-me para o centro comercial para uma loja especializada em electrodomésticos.

Vamos comprar um frigorífico novo, um daqueles que dá água e gelo, basta carregar num botão.

Isto foi o que ela disse quando estávamos a estacionar no parque de estacionamento subterrâneo, ali perto do sítio dos carrinhos de supermercado, entre a fila H e a fila I com uma lista amarela. Eu tinha um tremor ligeiro nos joelhos e um aperto na zona do coração. A zona onde tudo dói, onde a vida se concentra. Do lado esquerdo do corpo, acima das costelas, ali onde tenho a mão invisível que ela nunca viu. A aliança a brilhar, outra vez. Uma ligação directa do músculo da vida à mão que nos dá de comer. Uma ironia, achei eu. Quando o rádio se calou e ela abriu a porta, senti que não era capaz de me levantar, mas depois fui. Arrastei-me obediente, centímetros atrás dela, os sapatos a martelar no chão, toc toc toc, e eu numa tristeza infinita a querer desfazer-me contra o asfalto, atirar-me para cima de um carro, morrer instantaneamente, como uma fotografia digital que se apaga e despreza com a facilidade de um gesto. Sim, podia eliminar-me, mas em vez disso fiquei quieto nas escadas rolantes a ver o cabelo dela, loiro, sempre loiro, para disfarçar os 40 anos que um dia vão chegar. Dizia isto muitas vezes, ela, como uma graça sem graça. Não avisei que iria sair de casa, não avisei que voltaria. Ela sabia. Sabia antes de mim. E eu só sei agora porque no dia em que decidi sair era para pagar uma série de contas, água, luz, condomínio, e quando cheguei ao escritório as facturas não estavam na minha pasta e eu ignorei o sinal, contudo agora, sempre agora, neste momento, percebi que ela já sabia e, por isso, pagou as contas porque nunca conseguiria viver devedora disto ou daquilo. Há anos que a oiço dizer

Deus me livre de dever dinheiro!

E então vejo-a a pegar nas facturas, a retirá-las da pasta de pele castanha que ela me deu (eu que até queria uma pasta preta) e pagar com gestos lentos no primeiro multibanco que encontrou. A referência, a entidade, o pagamento. Porque eu podia não voltar naquele dia. E ela tinha razão, não voltei. Deixei-me ficar no estádio primeiro. Depois dentro do carro. Comi um hamburger na roulote do Campo Pequeno. Voltei para dentro do carro. Andei por aí, fiz os viadutos das avenidas, subi às Amoreiras e quando vi a placa a dizer margem sul, segui em frente para Cascais. Uma coisa estúpida. O telemóvel tocou e nem olhei para o visor.

Deus me livre de dever dinheiro!

Em silêncio oiço-a com a clareza de um sopro de vidro. A voz dela dentro da minha cabeça é como um disco, uma opção de atmosfera sonora, picos vermelhos e azuis num computador, como se vê nos filmes. Podem dizer que é desamor, podem criticar ou relativizar. Sou apenas mais um. E ela outra vez

As pessoas tendem a achar-se inteligentes, com bom gosto e com sentido de humor. Como se fosse possível sermos todos abençoados.

Na zona dos micro ondas, pouco antes de chegarmos ao império das arcas e frigoríficos cromados, com relógio digital, duas portas e outras mordomias, vacilo. O telemóvel toca de novo e eu sei que se atender o meu coração vai começar a bombardear, acelerado, descompassado. Dela não oiço a voz. Conheço-lhe os dedos e o riso, a forma curiosa de escrever as mensagens curtas no telemóvel. Dela sei apenas que sendo a outra com quem me envolvi, por quem deixei a minha família, é também alguém que desiludi. Arrastei-a numa esperança louca.

Contigo será diferente. Vou-te fazer feliz. Tão feliz. A nossa medida de felicidade não terá fim.

Reconheço que fui eu que comecei a namoriscá-la. Fui eu que a envolvi num abraço depois de uma noite de copos. Fui eu que não voltei para casa naquele dia rumo a Cascais para a ver, para a sentir, para estar junto dela num mundo que nem sequer é meu. A banalidade cor-de-rosa de tudo isto é assustadora. Homem casado envolve-se com mulher divorciada.
E era fácil acreditar na possibilidade daquela nova relação, sedução e glamour, lingerie e álcool. Durante umas horas, enquanto o sono não vinha. Dentro desse adormecer de cansaço lá estava a minha mulher, a minha mãe, a minha filha, a minha casa, a minha prestação ao banco, a minha rua, a minha roupa, a minha vida. Duas semanas depois entrei em casa com a mesma chave de sempre. A minha casa, a minha porta, a minha mesa, a minha cozinha. Ninguém disse uma palavra durante um pouco. Lavei os dentes. Na minha casa de banho. De regresso à sala passei as mãos pelos cabelos da minha filha que continuou a olhar para a televisão, comando na mão, as unhas pintadas de cor-de-rosa. E ela disse


Vamos comprar um frigorífico novo, um daqueles que dá água e gelo, basta carregar num botão.

Agora a outra, a mulher do riso gigante, cuecas no chão do carro, frases compreensíveis e sensatas, tenta falar-me. E olho para o telemóvel, para a mulher loira que faz perguntas ao empregado com um ar empertigado que sempre me irritou (houve uma altura em que o achei adorável), viro as costas e atendo

Eu vou já para casa.