quinta-feira, 24 de julho de 2008

até dia 1

Agora, desculpem, vou a Oia ver o pôr do sol, volto no dia 1.
Até lá, fiquem bem.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

A diferença entre um editor e um revisor (receita para futuros escritores)

O editor compreende-nos.
O revisor questiona-nos.
O editor sabe que temos um estilo, que odiamos advérbios de modo, pontos de exclamação e aspas.
O revisor acha que os textos devem levar advérbios de modo, pontos de exclamação em excesso e aspas ou itálico a propósito de tudo.
O editor acarinha-nos, mima-nos e orienta-nos. Faz sugestões com bondade, mesmo quando escreve: tira isto, não precisas.
O revisor usa caneta vermelha.
O editor usa um lápis de carvão ou, no limite, uma caneta azul de ponta fina que se confunde com o texto.
O revisor sabe coisas.
O editor filosofa connosco e aceita a metafísica com generosidade.
O revisor gostaria de ser escritor.
O editor já é uma forma de se ser escritor.
O revisor encara o nosso original como mais um documento.
O editor vive a nossa história, adopta os nossas personagens, sofre connosco.
Dito isto: viva aos editores, abaixo os revisores.

Ressalva: há bons revisores que nos salvam - a nós e aos editores - de pequenas maleitas da língua, a esses/as peço desculpa pelo desabafo e agora vou usar um ponto de exclamação porque sei que tenho um editor que vai sorrir com isso!

terça-feira, 22 de julho de 2008

a tarefa mais ingrata

Depois de ter escrito e revisto o livro, há as provas. A merda das provas. O revisor que não percebe o óbvio. Palavras em itálico que afinal são regulares. Arroz-doce tem hifen mas meio sorriso nem por isso. Anticristo é uma só palavra desde quando? O novo livro está quase, quase e eu só tenho que o rever. Afinal faz parte da minha função. Não custa nada.
Uma ova.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

dor

A dor não tem um princípio, quer dizer que se instala suave, como um animal a procurar a posição para dormir, depois apanha-nos devagar, lenta, em surdina.
A dor tem consequências estranhas e improváveis, quase degradantes.
Há uma vergonha associada.
E não há qualquer espécie de compaixão ou vontade de celebrar este papel de vítima de uma dor, a minha dor, a que ficou no meu corpo, a única em que penso por ser paralizante de tudo o resto.
Como já se disse, a dor não tem princípio.

domingo, 20 de julho de 2008

Eu na multidão

Fico aqui com os outros a ver-te.
É um pouco estranho estar assim nesta situação de igual para igual com a multidão a ver-te. Não sei o que vim cá fazer. Magoar-me. A ti não. Não me consegues ver daí desse cavalo alto onde estás.
Estás maravilhosa.

Cruzo os braços para me proteger das pessoas que passam, que querem usufruir o momento, que te querem ver. A ti.
Toda tu exposta como uma peça de arte. Nós como moldura dessa tua condição.
E eu com eles, apenas mais um a ver-te.

sábado, 19 de julho de 2008

e a vida depois disso

Os miúdos sairam com as duas malas de viagen, as mochilas, os chapéus, as pranchas para brincar no mar, os medicamentos, os cartões de saúde, os jogos de computador, os livros.
O meu coração partido em dois desceu no elevador com eles e foi-se embora.
Fica a vida depois disso.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Parabéns Madiba!

Nelson Mandela faz hoje 90 anos.

O mote permanece: está nas nossas mãos.

Mudar o mundo.
Construir a paz.
Ser melhor.
Ouvir os outros.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

da enorme maldade de alguém

Há um conto de Antonio Tabucchi de que gosto especialmente. Chama-se Enquanto o Inverno não chega e está no livro Pequenos Equívocos sem Importância, título que resume com brilhantismo o verdeiro génio de Tabucchi. Sou militante confessa. Hoje lembrei-me deste conto, da forma triste e agastada como uma viúva de uma grande figura da cultura se debate, no dia do funeral, com a enormidade da herança que resta: os inéditos. Ocorreu-me este conto, hoje pelas cinco da tarde.
Há em quem não seja nada, não tenha nada, não signifique nada além de um equívoco e queira sempre tomar o lugar do outro, por pura maldade, por ser capaz desse despudor. Eu gosto desta palavra: despudor. Alguém poderia ter levado as palavras, ter rasgado a maldade noutros tempos. Mas ela permanece, fiel à rotação do planeta, imbatível, matemática. Não sendo uma apreciadora da lógica da matemática ou da teoria do determinismo, resguardo-me na literatura. Por que as pessoas na vida real são capazes de uma enorme maldade e, num repente, as pessoas de quem gosto podem não conseguir sobreviver a isso.
Há dias assim.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

o miúdo na casa de banho II

Então o homem pegou na máquina de cortar o cabelo. Ajustou o pente três com um certo profissionalismo, disse

- Doze milímetros...

Talvez seja pente três. Sentado no banco de madeira o miúdo encarou a experiência com muito queixume. No fim os cabelos confundiam-se com o corpo moreno. O miúdo juntou-os perto do sexo e riu-se às gargalhadas.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Três



Um
Foi grande o meu amor
não sei o que me deu
quem inventou fui eu
fiz de você o sol
da noite primordial
e o mundo fora nós
se resumia a tédio e pó
quando em você tudo se complicou

Dois
se você quer amar
não basta um só amor
não sei como explicar
um só sempre é demais
pra seres como nós
sujeitos a jogar
as fichas todas de uma vez
sem temer naufragar
não há lugar pra lamúrias
essas não caem bem
não há lugar pra calúnias
mas por que não
nos reinventar

Três
eu quero tudo o que há
o mundo e seu amor
não quero ter que optar
quero poder partir
quero poder ficar
poder fantasiar
sem nexo e em qualquer lugar
com seu seco junto ao mar

Adriana Calcanhotto - Três
Marina Lima/António Cicero

(o disco Maré em exibição no Festival Delta Tejo, em Lisboa, este fim de semana)

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O que veneza tem


No Florian os músicos russos atacam a pauta com o pouco de Verdi que os turistas vão conhecer e trautear. O chá com scones chega na bandeja de prata. Mãe e filha tentam não se olhar enquanto comem um doce qualquer, difícil de distinguir. Faz calor. Muito calor. Mais tarde irá cair granizo e chuva de uma forma inesperada, quase profética. Sinto um certo medo. Oiço a trovoada que aqui parece sempre maior e pior por não estar disfarçada pelo ruído típico das cidades onde circulam carros. Os gondoleiros protegem com capas azuis as embarcações lacadas a preto. No Rialto os japoneses confundem-se com os americanos e os brasileiros deixam-se levar pelos senegaleses que vendem imitações Louis Vuitton, Gucci, Prada. As lojas anunciam 50 por cento de desconto. As lojas de máscaras permanecem inalteráveis: os mesmos preços o ano inteiro. Máscaras e chapéus, bengalas e luvas bordadas. Há ainda pinóquios, livros em branco com encadernações lindas, papéis de embrulho com pautas de Vivaldi ou escritos de Casanova, almas de uma outra Veneza. Há os Tintoretto e os Tiepolos, os Bellinis e ainda e sempre a arquitectura inesperada das ruas estreitas que se enchem com a água da chuva e depois namoram o sol com o mesmo encanto. O que tem Veneza?
Pela tua mão tem quase tudo.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

um dois ou três

...poesia esgota o nosso potencial de tristeza, disse a rapariga à mesa do café, na esplanada. Numa hora daquelas, quase seis da tarde, talvez fosse de esperar que a conversa fosse outra. A rapariga tinha um ar estrangeiro, cabelos demasiado loiros, olhos verdes. Tudo isso engana, eu sei, mas mesmo assim...
Contei - um, dois, três - e o rapaz, como seria de esperar, espalhou-se dizendo que a poesia não lhe interessava por ser, enfim, demasiado complicada. A rapariga colocou os óculos escuros, desnecessários.
Afastei-me depois de ter terminado o gelado de limão. O meu marido não ouviu a conversa, não percebeu e, por isso, continuou a organizar o seu dia em voz alta, como é seu hábito.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Ajudar a Casa do Gil


Caríssimos

Este é o segundo livro que escrevo para a Fundação do Gil, cedendo os direitos na íntegra. Por isso, sem pudor, vos digo: comprem, por favor, comprem, o livro tem ilustrações lindas e a casa do gil e os meninos merecem! Dia 13 de Julho a casa faz dois anos, há um jantar de beneficiência no restaurante Estoril Mandarim. Por favor façam tudo por ir. É uma boa causa! Uma excelente causa!




Francisca ao colo




O homem chegava a casa todos os dias pelas cinco. Ela já sabia. Tinha um ritual dele que implicava um silêncio. A roupa, os sapatos, uma ida à casa de banho. Depois, mais descansado, o homem começava a falar com ela. Todas as frases tinham o seu nome:

- Francisca, você sabe...

- Francisca, vem cá...

- Francisca, tiveste um bom dia?

O homem sentava-se para trabalhar e Francisca ficava por ali. O silêncio era substituído pela música das teclas do computador. Francisca imaginava sinfonias a partir daquele som e apreciava com cuidado a dança dos dedos dele no teclado. Um bailado inesperado, os momentos de pausa, os dedos estendidos para um futuro feito de letras. Por vezes o homem parava para beber cerveja, para limpar os óculos, passar as mãos no cabelo. Francisca namorava-o sem alarido, numa contemplação que ela considerava ser sadia. O homem queixava-se de alergias, comichões, olhos inflamados, nariz a pingar. Um dia anunciou que ia ao médico. Francisca esperou pacientemente o seu regresso. Ele entrou em casa e disse

- Francisca, a nossa situação mudou, sou alérgico a gatos. Arranjei-te outro dono.

Francisca ouviu imóvel. Depois, rápida, pulou pela janela e desapareceu.
Ainda hoje o homem sonha com Francisca. Ela vem espreitá-lo à janela, noites longas de cigarros e sinfonias ao computador. Ele não suspeita que ela o vigia. Ela não desconfia dos sonhos dele. Uma gata não é apenas uma gata. Afinal.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Paraty 2008


Carlos Lyra passeia no jardim da pousada da Marquesa em Paraty com uns óculos de fino ouro amarelo, lentes lilás. Mais longe, junto ao quarto que gosto de pensar ser o número 13, o italiano Alessandro Baricco saí sem saber nada sobre a bossa nova. Cantarolei a "Minha Namorada" da autoria de Carlos, ninguém me ouviu, e depois ele seguiu ao encontro de Magda, a mulher. Ela tem uns cabelos com fios de prata e ri com facilidade. Ao fundo a Inês dava uma entrevista. Os rapazes estavam longe da vista: Agualusa escrevendo no quarto, Banza numa mesa da Flip com o meu crachá de entrada que ele adulterou por excesso de zelo (ninguém olha para os nomes), Viegas perdido algures a fumar uma cigarrilha, Ondjaki tinha regressado ao Rio de Janeiro por 24 horas, José Luís namorando as mulheres todas ou alguma em particular com aquela graça de menino que só ele tem. Saí da pousada e fiquei na praça matriz, ali engolida pela flipinha, os miúdos a brincar com as figuras do espírito santo, desenhos, flores e moinhos de ventos gigantes. No Coupé, café da esquina, depois do restaurante Bartolomeu, o empregado da esplanada corria. As mesas e as cadeiras à beira do colapso. O empregado chama-se Paulo. No interior, onde só se pode estar quando as ventoinhas do tecto estão desligadas, está a Paulinha, uma negra cheia de carnes luzidias, sorriso largo e dentes sobrepostos. Peço açaí e penso em Djavan por existir aquela ponte de conhecimento, uma canção que fala de açai e que eu, por fim, sei o que é. Garantem-me que tem vitamina. Vem com um pacote de granulado, ou seja, cereais e há pedacinhos de banana misturados na mistura cor de terra. Como devagar. Está gelado. A fruta é batida com gelo. Dizem que tem propriedades milagrosas e eu, crente, derrotada na miséria de uma crise de infecções sucessivas, entrego-me ao ritual do açaí. Na praça as crianças pulam e, bem ao fundo, do outro lado do pequeno rio, sei que está a tenda gigante dos autores e toda a azáfama. Há quem vá ver o colombiano, o anormal, como lhe chamo (lamento, mas nem o nome dele consigo escrever). O homem que disse que Ingrid não deveria ter sido libertada; que tinha provocado o rapto. Dias depois, no jornal do Brasil, leio o relato sucinto de Ingrid sobre a rotina dos seis anos de cativeiro. Ela esclarece que há coisas que são dela, que não vai contar. No mundo longínquo da Flip, onde os editores bebem Maria Isabel em copos mínimos, fumam cigarrilhas e discutem pormenores de contratação, a Colômbia está longe, tão longe.
Como num quebra noz, sinto a minha cabeça explodir. Brain freeze. O meu marido tem por hábito avisar as crianças. Comam devagar. Está muito gelado. O meu marido não está aqui. Vejo passar a escritora nigeriana com o seu marido alto e esbranquiçado. É uma mulher bonita. Agualusa diz que talvez seja Nobel, um dia. Na mesa a que assisti ela disse que os escritores só têm um papel: escrever. E que só se pergunta aos escritores africanos se estes devem ter um papel denunciador. Agualusa mediou a mesa com sabedoria. Pepetela foi gentil, tranquilo, contou histórias de pessoas em guerra. Disse que só quem fez a guerra pode saber construir a paz. Fiquei a pensar naquilo. Vou lendo “Os Predadores”, o livro lançado agora no Brasil pela Língua Geral, a minha editora.
A Inês arrasa na mesa dela. O público está louco. Assina livros das nove e pouco da noite até às onze. Diz-me que o calo de escrita cresceu. Di-lo com um certo orgulho. Eduardo Coelho, o editor, o meu, aquele que importa, o da Língua Geral, combina almoçar comigo para vermos um original. Tem notas. É gentil. Tem sempre razão. Bebemos coca cola zero, almoçamos feijoada que não tem feijão. Seguimos para a praça.Viegas conta, pela terceira vez, a anedota sobre as pirâmides, essas putas. Rimos todos. É fácil rir. As conversas cruzam-se. Andamos às voltas na calçada tortuosa à procura de um cocktail especial numa casa privada. A casa não tem explicação, está numa outra dimensão e pouco importa, instalamo-nos no jardim e gozamos com as metáforas sexuais dos escritores: os mastros, os búzios, as velas que se agitam. Tiram-se fotografias. De regresso ao quarto há livros que se multiplicaram, jornais, a Inês à porta da pousada com Pepetela, a Inês a dizer que o seu livro é uma declaração de amor ao Brasil. Há ainda a Piauí e o João Moreira Salles que navega na piscina da pousada com um calção vermelho e o Plínio que me traz um abacate gigante. Apenas por ser a minha fruta predilecta. Apenas por estar doente. A Paulinha abraça-me. Vejo-a com a Connie na conversa e a minha cabeça permanece presa nas garras ferozes do quebra noz. Falta-me a minha casa. O meu marido. Os meus filhos. A Paulinha diz que é psicológico, que tenho alergia ao Brasil. Não é verdade, claro. Como o Pessoa estou pela verdade e pela aspirina. A Cecília, a minha querida editora em Lisboa, vai à farmácia, traz ajudantes em forma de comprimidos. Pergunta-me sempre: estás bem? Melhor? O dia do seu aniversário é passado na lancha de alguém que tem dinheiro para ter uma lancha. A Connie, generosa, faz questão. A Cecília merece. Merece muito. Há sashimi a bordo, contar-me-á mais tarde. Vamos às compras e perdemos a cabeça na Marco, Lab de Roupa com Elasticidade. No fim a moça diz que a loja vai abrir em Lisboa. A Cecília fica a repetir que a Maria João, a filha, ia adorar isto ou aquilo; ou que a Ana não usaria nada daquilo; ou ainda que o João, o marido, vai amar as t-shirts com motivos índios. Os dias correm ligeiros. É bom estar com pessoas de quem gostamos, de cheirar livros, ver autores que não conhecemos, descobrir. No dia da partida planto-me aos pés do pai da bossa nova. Foi um privilégio abraçar Carlos Lyra. Ficámos amigos instantâneos, como numa sopa rápida, moderna. A viagem para o Galeão, o aeroporto, encheu-me de cansaço. Dormi no avião e quando cheguei o meu marido deu-me um abraço do tamanho do mundo e umas flores lindas, brancas e lilases que cheiram àquela passagem do livro do Pepetela quando o Nacib namora a menina com nome de cantora francesa. De repente, tudo se toca. É bom voltar para casa.